Jamie Lee Andreson, PhD Ola! Bem vindes, povo do circo, artistas do mundo inteiro! Estou muito muito feliz de estar voltando com vocês com um novo episódio da Convenção Brasileira de Malabarismo e Circo, que aconteceu no Vinhedo, São Paulo em novembro de 2024. Esse episódio conta com uma entrevista ao vivo com artistas e produtores do circo que aconteceu na convenção. Então tem todos os ruídos, tem crianças, tem uma gravação bem bem ao vivo mas com muito conteúdo sobre a arte do circo. Esse será nosso último episódio da temporada Arte e Cultura nas Periferias com o título "Da rua para a lona: o circo no Brasil e o mundo afora”.
E estamos aqui para ter uma conversa sobre suas experiências como artistas circenses e produtores do Brasil que viajam e apresentam internacionalmente. Então temos aqui Cristina Macedo, Emerson Noise e Marco Gil. Muito obrigada pela participação de vocês. Eu vou começar com uma pergunta bem geral sobre sua trajetória e como foi que você entrou pro mundo do circo. Então vamos começar com Cristina.
Cristina Macedo A minha trajetória com circo começou com uma prática na rua. Não foi algo que eu fui para a escola, como muitas pessoas têm a oportunidade de ir para as escolas. Mas eu aprendi. Aprendi muito. A primeira a primeira técnica que eu aprendi foi o malabarismo, né? Eu encontrei um grupo na rua e aí me interessei, perguntei o que era e daí comecei a praticar. Gostei. E a partir daí levei isso como algo que se tornou parte mim. E até hoje estou praticando. Isso foi em 2004, quando eu tive a minha primeira experiência com clavas e até hoje pratico.
Jamie E Emerson.
Emerson Noise Oi gente, boa tarde, boa noite, bom dia! Eu faço malabares já faz uns 20 anos. E eu também... a minha história é um pouco parecida também, como a Cris também eu aprendi a fazer malabares na rua. Eu tinha sonhado que ia ser malabarista e minha mãe riu. Por isso eu falei, "Mãe, sei que ia ser malabarista". E ela falou, "Como assim malabarista?" E aí passou mais ou menos uns três ou quatro anos eu comecei a fazer malabares por conta de um amigo que fazia malabares reciclados e foi uma paixão. E com isso já comecei a ir ao semáforo e aí comecei a fazer malabares e ir aos encontros, malabares e as convenções. E assim eu fui me formando, porque eu também não conseguia entrar em escolas de circo, né? Eu tentei algumas escolas de circo e não tive a sorte de entrar. Então, todo o meu ensino, o meu estudo, ele é autodidata e com muitas convenções nas costas. Então já são 20 anos de carreira.
Jamie E Marcos.
Marcos Gil Meu nome é Marcos. Eu tô no circo desde os anos 2000. Eu também não sou de escola ou família de circo. Eu aprendi também na rua, com malabares. E daí comecei a fazer coisas de palhaços, depois ser palhaço. Daí fui para servir de lona. Fiquei muito tempo em circos tradicionais, viajei um pouquinho para fora e aqui há 22 anos participo do Circo no Beco, que é um evento que tem toda segunda em São Paulo, que reúne os artistas. E esse ano no Circo no Beco, estou organizando a convenção. Essa aqui é a convenção número 22, que está muito legal e é legal receber o podcast, porque isso é uma coisa que vai ficar para essa galera imensa que está aqui agora e todo mundo que vai escutar. Eu sei quem participou da convenção, vai ficar curioso, vou divulgar. É muito legal esse papo todo.
Jamie Obrigado. Então, muitos começam pelo malabares de rua, né? Que também eu vejo aqui a minha primeira vez numa convenção nacional que o nível de malabaristas de rua é incrível. Assim não tem teto, né? É sempre mais e mais e mais. Mas aí leva a outras linguagens que vocês, os artistas daqui, fazem agora, muitas coisas além dos malabares. Então talvez vocês possam comentar como esse início ampliou e com isso os lugares que o circo te leva ou já te levou ao longo de sua carreira.
Cristina Então, na minha prática, assim como atividade de circo, com o malabarismo, inicialmente eu fazia principalmente malabares sem fogo. E a maior evolução que eu tive nesse percurso foi justamente a mudança de trabalhar o malabarismo sem fogo para trabalhar com malabarismo com fogo. E foi a partir daí que também eu comecei a ter uma ampliação do meu mercado de trabalho, principalmente quando comecei a viajar, porque os grupos que trabalham exclusivamente com o espetáculo de fogo são poucos no mundo. Principalmente pelo fato de que existem várias restrições e existem vários problemas relacionados à segurança de atuação com o malabarismo de fogo. Então assim eu fui criando um circuito que, ao longo do tempo, as pessoas que me conhecem sabem como é a minha prática e como é o meu trabalho. Então, acabou que até hoje as pessoas me convidam para fazer parte de alguns eventos, festivais, não apenas no Brasil, mas também no exterior, algumas vezes por meio de projetos, algumas vezes por convite. E assim, com essa prática do malabarismo com fogo, eu já fui para vários lugares do mundo, dentro do Brasil, alguns lugares, alguns estados, e fora do Brasil eu já fui pra Suíça, já fui pra Espanha, já fui pra Itália, México, Panamá e já fui para vários lugares, principalmente atuando com malabarismo de fogo.
Emerson Eu... Eu sempre gostei da dança, né? Tipo, na escola eu sempre fui o que ia para a quadrilha. Vai ter coreografia de fim de ano, eu estava lá. Então, eu acho que tipo, o malabares para mim foi juntar essas coisas. Tipo, eu sempre quis atuar. Eu sou de uma periferia do Rio de Janeiro que se chama Mesquita, e eu, como criança periférica, eu não tinha essa perspectiva jovem, periférica, né? Não tinha essa perspectiva de tipo fazer um curso de teatro ou uma coisa desse tipo que na minha escola não tinha. Então, tipo, quando eu encontro o malabares, ele vem para somar tudo isso, né? O teatro, a dança, essa coisa também do palhaço também, que quando eu me encontrei palhaço, foi muito especial, porque não sei, tipo eu cheguei numa convenção, vi um montão de palhaços e aí fiquei pensando como é que eu vou encontrar meu palhaço? Porque eu quero ser palhaço. Mas e aí? Então, tipo, são coisas que já estão dentro da gente, que a gente vai juntando e quando vê, faz um bolo de experiências, né? Então é muito legal esse lugar assim. E eu acho que tipo na minha visão assim sobre o malabarismo, sobre a parte cênica, sobre juntar as coisas e como se conectar com a minha infância — eu penso muito na minha infância quando eu vou criar as coisas. Eu lembro, "Ah, poxa, eu soltava pipa quando era criança. Será que eu consigo soltar pipa em cena hoje em dia?" Então eu levo a pipa. Ah, o pião, que é um objeto que eu brinquei muito quando criança e pensava, "Não, peraí, o pião também pode ser inserido no circo. E de que forma eu posso ser um pião ou jogar um pião na demonstração da técnica?" Então, acho que é meio que encontro as artes que eu vivo, vou vivendo na vida, elas vão se encontrando e vai dando esses frutos assim.
Marcos Pronto, o circo já me levou, já me levou para muitas convenções que nem essa. Porque o circo tem isso, a gente se encontra, tem convenções regionais e tem os encontros, tem muitos lugares, tem encontros semanais que tem em São Paulo, que eu acho que é isso, que é um dos melhores lugares que o circo me leva. Porque segunda-feira, que é o dia de descanso dos artistas lá em São Paulo, todo mundo se encontra. Muitas pessoas que vêm de fora estão lá, e é um lugar que para mim é uma festa divina, igual aqui, a convenção. Mas o circo realmente tem isso, que o circo tem que mudar o público um pouco, não tem que mudar o show. Não tem como você...se você faz o número de sete bolinhas, não tem como você fazer oito para o dia seguinte? Você muda o público, não muda seu número. Quando, eu até estranhava isso, que para quem vê de fora é só um número, mas para quem faz é uma repetição. Por isso que quando viaja funciona muito. Então eu até tentei fugir das capitais, fugir de outros lugares. Mas o mais longe que o circo me levou foi para a Arábia Saudita porque lá tem um circo que só trabalha brasileiros e latinos. E é muito legal ver a diferença de público assim como eles gostam de brasileiro e como essas influências acho que isso está mudando. Antes tinha muita influência só europeia. É o sonho de todo artista — ir para a Europa trabalhar assim. Acho que hoje, cada vez mais está mudando, porque o mundo é muito grande. O mundo é muito grande. Então a Arábia Saudita, China, África. Eu acho que essa conexão cultural, que é o que está mudando, é aqui uma conexão cultural muito grande com a América do Sul, né? Tem muitas... Isso muda. Isso que é interessante de ver. O circo vai levando a gente.
Jamie Eu percebi que muitos viajantes artistas da América Latina ficam um bom tempo no Brasil, né? E tipo, eu não sou daqui, mas eu viajei para cá e agora eu moro aqui, pelo menos para alguns anos, né? Então, eu mesmo sou uma estrangeira que fiquei no Brasil, então me identifico com isso. Mas eu acho interessante, né? que é um polo, né? de arte, de cultura e estamos falando do circo. Então por que será? Por que o Brasil atrai assim essas pessoas na sua percepção?
Cristina Na minha percepção, eu acredito que existe uma característica do povo brasileiro, que é algo que eu posso dizer com afirmação e com segurança, que é o fator acolhimento. A gente na verdade é um povo que quando a gente encontra o outro, encontra o diferente, a gente quer se aproximar mais. A gente não quer repelir aquilo que é próximo. A gente quer se aproximar, quer saber de onde veio, o que é que está fazendo, e qual é a proposta para o futuro. A gente tem essa ideia de agrupar. Então a gente, quando vai, por exemplo, para fora do Brasil, uma coisa é muito engraçada, que já aconteceu muitas vezes ao chegar em alguns festivais, é que você olha assim para o lado e de repente você escuta uma voz em português. Nossa! E de repente vem um agrupamento gigante de pessoas falando português, porque tem essa tendência não somente aqui como fora. Então, as pessoas que vêm aqui para o Brasil. Eu acredito que elas encontram nisso uma coisa muito fascinante, né? É um coração de mãe dentro de cada pessoa que acaba tentando, querendo englobar as pessoas que estão chegando aqui. E acaba que as pessoas se sentem confortáveis, encontram o ambiente afável, né, um ambiente em que ela consegue também se desenvolver e ser a sua própria pessoa. Não precisa mudar o que ela é. Ela vem aqui e de repente encontra uma situação em que ela quer aprender a fazer alguma atividade. Ela vai encontrar uma pessoa que vai ensinar ela aquela atividade e com muita boa vontade. Não é porque ela precisa ser cobrada para aprender aquilo. Então, acho que é isso. Quando a pessoa vem de fora pra cá, se encanta muito com esse abraço que o brasileiro dá nessas pessoas independente de onde elas sejam, independente de raça, independente de cor.
Emerson Eu acho que é o feijão. Na verdade, eu acho que é o feijão, porque a gente do sul ao ápice do norte, a gente tem feijão de todos os sabores e cores e eu acho que a galera fica fascinada pelo feijão. E também acho que tipo, a nossa cultura popular também diz muito disso. Você vê que tipo, tem muita, muita gente que, por exemplo, tem muitos amigos da Argentina que vêm para o Brasil e se encanta pelo coco. E aí começa a tocar coco. E aí, conhece a galera do coco e começa a dançar. E com ela já tá num grupo de coco e já não volta mais pra Argentina. E aí vai tipo pro Pernambuco. Conhece o cavalo marinho, e aí quando vê, tipo eu tenho muitos amigos tipo que que são super da percussão, que sabe muito mais de cultura popular brasileira do que eu em si, que sou do Rio, que é a cultura popular e’ o samba, o carnaval, e o pagode, e... Então acho que é muito isso. E o Brasil ser um país muito grande, né? Como é um país muito grande para você viajar o Brasil, você tem que ir, né? Tipo, agora numa turnê, a gente sai da Espanha para chegar na França são quatro horinhas. Você tipo, para sair do Brasil, você vai ter que ir saindo dependendo de onde você sai, você vai ter que dirigir ou voar horas. Então, acho que está muito nisso, na comida, nesse lugar de conhecer a primeira… a pessoa na primeira vez na vida e já está levando para casa, já está tratando com o melhor amigo, tira a roupa do corpo pra dar pra pessoa. Eu acho que a gente tem muito esse lugar e é muito visível quando a gente vai para outro lugar que não é assim, né? Porque a gente é de falar alto, a gente é de festa, de não que nos outros lugares não sejam, mas eu acho que a gente é meio profissional disso, né? Tipo, ah, fulano chegou, chegou, então é churrasco. Chama não sei quem. Então tem uma festa? Tem um, acho que é um ritual assim. Acho que é o brasileiro, ele ritualiza o encontro, né? Então, por isso que a galera fica fascinada. Vem, imagina, começa no Sul, que já é uma tradição, que é um pouco europeia também, pá. E depois vai para o Sudeste, depois quando chega no Centro-Oeste, já vê um outro Brasil chegando no Nordeste, no Norte. Então, acho que também essa diversidade de culturas e esse abraço apertado, aconchegante que a gente, a gente consegue dar, né?
Marcos Sim. Eu, como brasileiro, eu fico tentando entender o que que é ser brasileiro, essa cultura. Assim, se eu fosse tentar explicar rápido isso que eu sinto, o que que é a cultura brasileira. Pensar que antes, uns 500 atrás, eram muitas culturas aqui. Eram vários povos aqui. Daí desde 1500 estão tentando falar que existe uma cultura brasileira, Né? Foi um império por muito tempo e até hoje — hoje é 15 de novembro, dia da República aqui no Brasil — e daí quando começou até a República tirar a coisa do Império e falar não tem que ter uma cultura brasileira. E daí veio essa história da antropofagia, né, que o brasileiro, ele não precisa ter uma cultura. Ele pode comer todas as culturas, digerir o que é bom e cagar o que é ruim, porque isso seria injusto a gente falar uma cultura brasileira, né? Porque é muito diverso de bairro para bairro. Mas talvez essa ideia de poder comer todo mundo, de se comer, o que faz ser tão acolhedor que a gente não precisa ter um circo, não precisa ser um circo tradicional, esquema europeu ou do mundo. A gente tem a liberdade de pegar esse circo europeu, comer ele, cagar uma coisa e jogar fora e se nutrir com outra. Então, acho que essa liberdade, a gente não lutar para ser alguma coisa, que a gente pode ser tudo que faz o Brasil ser tão acolhedor e as pessoas ficarem aqui, né? E o resto do mundo não é acolhedor?
Jamie Nem tanto, né? Realmente, nem tanto. Eu posso afirmar o que vocês explicaram. Realmente eu acho válido né, que esse acolhimento atrai muitas pessoas, gruda muitas pessoas. Mas focando no circo mesmo assim, não só a cultura. E também são culturas, né? Conexões culturais não é só uma, né? E essa diversidade geográfica também traz muita diferença. Mas no circo, de certa forma, une as diferenças de uma forma de talvez harmonia, às vezes. Mas vocês acham que tem algo específico do circo brasileiro ou uma linguagem do circo que atrai? Como técnica também?
Cristina Eu acredito, eu vou responder um pouco ampla essa pergunta. Porque assim, eu acredito que a técnica circense é a técnica circense. Cada pessoa que aprende a técnica, qualquer uma delas, vai ter a sua subjetividade, que vai ser impressa no lidar com aquela técnica. Então, por exemplo, o Tchatcho trouxe muito a questão da experiência dele da infância, outra pessoa vai trazer uma outra experiência, que é a questão da vida dele, né? Cada pessoa vai trabalhar esse singular dentro da sua especificidade, desse seu lugar de mundo. No Brasil, é óbvio. E como tudo é contextual. Você vive no Brasil e quando você vai fazer a sua criação, você vai trazer aquilo que é presente na sua cultura, na sua vivência, naquilo que está ao seu redor. Então, é natural que você consiga marcar elementos que possam ser chamados de brasileiros. Mas é um brasileiro específico. Um sujeito artista, estará levando para cena a sua criação a partir do seu ponto de vista. Então assim vai existir. Mas são várias categorias. Não é um brasileiro que tem uma técnica, uma cultura brasileira do circo. São várias culturas brasileiras, várias pessoas, com criações diferentes que imprimem seu eu dentro dessa criação.
Emerson E eu também sinto que com as respostas do público, também viajando pelo mundo e tal, é que a galera tem o circo brasileiro como referência de novidade. Porque se você for botar na balança a gente... O boom do circo brasileiro, sem ser de família tradicional, vai fazer no máximo 25 anos. Foi ontem. A gente começa se formando pela galera latino americana, argentina, chilena, um pouco dos espanhóis que vieram para o Brasil, que fizeram as primeiras convenções. Então, eu acho que hoje o brasileiro ele já fala por si só. Hoje já tem uma coisa tipo assim cara. Aquele cara lá do Brasil, que tipo, vamos usar o Anderson como exemplo, que é um malabarista que viaja o mundo, que tecnicamente tem uma excelência artística também sensacional, que a galera fala, vê, já sabe o que é o Anderson do Brasil, porque ele tem a forma dele jogar, a forma dele de estar em cena com a presença dele em cena. Então, acho que a gente tem um salzinho assim, que mesmo fazendo o circo tradicional contemporâneo, clássico, que é de essa energia nova, essa coisa de uma arte que sai da família tradicional e vem para a gente com esse saborzinho de novo, de jovem de 25 anos de idade, dos truques serem renovados. Então, para mim tem esse lugar da gente conseguir aprender algo e dar uma essência assim que daqui há uma essência brasileira, mas que é uma essência pessoal mesmo, tipo da sua vivência, sua história, seu estar em cena. É um salzinho diferente. Tipo quando você vai comer acarajé em outro estado, você fala assim, "falta um sal baiano aqui". E é visível, é visível.
Marcos [00 20 51] E eu acho que a diferença do circo aqui é isso que o Tchatcho você falou. Eu acho que é uma coisa que está começando agora a ter realmente um circo mais brasileiro, porque o Brasil não foi um país que super incentivou o circo, sei lá que nem Cuba, que nem a China, que nem a Rússia, que lá eles tem uma linguagem própria, fala da tropa russo. Você já imagina uma coisa. Uma pena que o Brasil não fez isso. Poderia ter feito, né?
Emerson Ainda não, né?
Marcos Decidi calcular isso como uma coisa de estado grande. Assim tem uma escola de circo só no Rio de Janeiro. Mas daí, o que aconteceu? Eu acho que veio tudo por muita influência até o século passado. Sim, agora, neste século aqui, com as convenções, que tem uma linguagem brasileira assim, tem o mesmo nível técnico. Eu acho que se você for a qualquer convenção no mundo, você vai ver o mesmo nível técnico aqui de sete bolinhas de tudo. Assim, não era assim há alguns anos atrás. Então, acho que essa linguagem brasileira está se criando uma coisa interessante que eu vi numa palestra da Hermínia Silva, que até o nome desse local aqui, né? A convenção tem. Os lugares são temáticos. E Hermínia foi uma historiadora. Ela era brasileira e cigana. Ela virou historiadora e começou a registrar o circo. Ela morreu no ano passado. Por isso que a homenagem desse local aqui, né? E ela falava isso que o Circo Cigano antes, quando chegou no Brasil, vindo do Leste europeu, não sei, ele se disfarçava para agradar o público. Sempre foi assim. Então não gostam de cigano? Nunca fomos ciganos. Não gostam. Sempre foi muito excludente e fazer o que precisava para ganhar dinheiro. O circo. Agora que eu acho que o circo tem uma liberdade para poder ser meio artístico mesmo. Porque antes o que interessava no circo falava muito. Tem que agradar, tem que agradar o público. E a arte não é feita para agradar. Se for ver, não é. A moldura do quadro é feita para agradar. Mas o quadro não. Quadro pode ser qualquer coisa. Eu acho que agora está tendo essa linguagem brasileira e vai ter cada vez mais, eu acho.
Jamie Então, o circo é um lugar de trocas internacionais, né? Então, eu gostaria de ouvir de vocês alguma história, alguma lembrança de uma troca que foi marcante para você.
Cristina Uma coisa que foi muito marcante para mim foi a minha primeira experiência de apresentação quando eu viajei para o exterior e me convidaram para fazer uma criação na cidade de Nápoles, na Itália. E quando eu cheguei lá, eu...a minha ideia era fazer um número de dança com fogo junto com uma outra colega. Só que aí, naquele momento, me propuseram uma outra ideia, que era fazer o mesmo número que eu estava querendo fazer, só que no ar. Eu iria ser elevada com uma cadeirinha e fazer isso num lugar muito alto, coisa que eu nunca tinha feito, né? Então, naquele momento foi onde poderia cair. Nossa, agora vamos ver como é que eu vou conseguir realizar essa façanha, porque tinha somente uma semana para poder fazer toda a criação e eu não tinha feito essa experiência antes. Então foi uma troca muito boa, porque ele me ensinou todas essas técnicas que naquele momento eu ainda não tinha o conhecimento. E foi o primeiro momento que eu posso dizer assim, que até hoje me marca muito, porque eu tive que realmente ter essa presença dessa pessoa que conhecia aquilo que estava fazendo que me trouxe muito desse conhecimento para poder conseguir depois realizar aquele número.
Jamie Te empurrou para fora da zona de conforto, né?
Cristina Me tirou da zona de conforto completamente.
Emerson Eu tenho uma história meio emocionante assim. Eu fui em 2016 eu fui convidado para ir para a Convenção Colombiana de Malabarismo e eu sofri um acidente com isso. Eu cheguei num ônibus que perdeu o freio e, afortunadamente, eu tive a oportunidade de estar vivo novamente. E com isso eu fiquei uns quase dois meses no hospital e foi muito legal ver a galera se movendo em prol da minha recuperação. Isso foi sensacional assim. Acho que diversos países fizeram varieties pra me mandar grana, pra me ajudar financeiramente, pessoas que queriam me dar, me atender como psicólogo pra saber como estava minha cabeça. Isso foi muito importante. Aí eu vi como o circo era unido. Sabe, como o circo é unido assim. Das pessoas que nunca nem tinha me visto, fazendo coisas em prol de mim, porque um outro amigo me conhecia e falou, "Não. É o Tchatcho", e isso foi muito forte assim de novo. Foram anos de luta. Hoje eu sou uma pessoa a mecer. Eu tenho uma mobilidade reduzida no meu joelho esquerdo. Mas foi assim. Foi um apoio mundial assim, por conta da minha causa. E eu tenho inúmeras lembranças do circo. Mas acho que essa foi uma das mais fortes assim, que foi como, caraca, somos uma bolha, mas também somos uma família assim. Foi bem forte.
Marcos Legal. Eu tava lá na, em um desses shows. Tenho duas histórias curtas. Uma eu tenho assim, que me marcou muito. Um livro que eu li, um livro antigo, aquele Lobo da Estepe, do Hermann Hesse, que tinha uma alucinação, que o cara vê um Teatro Mágico, que era um lugar que para entrar você tinha que saber rir, tinha que saber dançar, tinha que saber amar. É um livro antigo, né? E daí eu fiquei, "Será que existe esse lugar?" Eu acho que existe um pouco assim na convenção, porque é uma coisa mágica que está acontecendo, tá acontecendo agora e toda convenção que eu vou, eu sinto uma mesma ligação assim. Me lembra a primeira, que foi quando eu fui em outro país, lembra? Então, causa essa conexão cultural muito grande... É muito... Eu fui uma vez só na convenção na Polônia, e quando eu estava na convenção, parecia que eu estava aqui, de tão caloroso que era todo mundo assim. Então, acho que extrapola um pouco a borda dos países mesmo, essa cultura do circo. E eu sinto isso agora. E dei uma última história que em uma convenção já faz uns dez anos em Piracaia, tem a apresentação Renegados, que são números que não aconteceram e vão para lá, né? E daí entrou o Lu Mineiro, um artista de Minas, né? E daí ele entrou no palco e falou, "Eu vou fazer um número que eu nunca fiz, mas eu acredito que no circo vai acontecer". Ele colocou uma colherinha de café no pé e com o pé ele jogou e a colherinha parou embaixo da orelha dele, na orelha. E o círculo inteiro comemorou, invadiu o picadeiro assim. Essa foi uma história inesquecível.
Emerson Eu estava lá.
Jamie Então vocês gostariam de compartilhar alguma experiência dessa convenção? Algo que aconteceu assim, que foi surpreendente ou prazeroso, ou não? Para registrar esse momento que estamos.
Cristina Eu posso compartilhar a minha felicidade de ter feito aqui a Oficina de Segurança no Malabares de fogo, que foi um momento muito interessante, porque a gente pode compartilhar algumas das nossas experiências como pesquisadores e também de pessoas técnica em circo, mas também da pessoa que trabalha como bombeiro civil, que é um dos nossos artistas, o Fabio que ele agora também é bombeiro civil. Ele se especializou justamente para poder atuar com maior segurança nessa área do malabarismo de fogo. E nessa, junto com a gente nessa apresentação tinha uma artista que ela teve um acidente em um festival e nesse festival eu também estava trabalhando também nesse dia. E é sobre um acidente que ela ficou seis meses no hospital e somente recentemente que ela está agora podendo estar saindo na rua, compartilhando com os colegas, poder está na convenção também foi uma experiência muito forte. Ela compartilhou essa experiência dela com a gente. Então, isso para mim me marcou muito e foi uma experiência realmente incrível. Eu me senti muito feliz de estar vendo que ela está bem e que foi um momento muito diferente da última vez que eu tinha encontrado com ela no festival quando a gente estava trabalhando, e tudo aconteceu.
Emerson Eu acho que convenção é sempre legal, porque é um reencontro de pessoas de diversos lugares. E é muito engraçado, porque tem muita gente aqui que a gente já se conhece há muito tempo, que se fala pouco na internet, mas quando a gente se encontra, parece que a gente é vizinho, sabe? A liberdade, o jogo não morre. É Bem. Caraca, fulano e tal e mata a saudade. E essa convenção, ela para mim, ela tem um lugar de aprendizado também, com coisas que vão dando certo e coisas que não deram certo. Porque eu acho que é bem isso. Tipo, a gente... É muito fácil jogar pedra no telhado dos outros quando é tipo, "ah, vamos lá, vamos reclamar, pa pa". Mas também é bom também pensar as coisas que tipo deu certo quantas pessoas estão aqui hoje em dia eu olho o público da convenção. Eu acho que 70% é de público novo. E eu venho nesse tipo de convenção desde a oitava convenção brasileira. Teve um período que se manteve a mesma galera durante um bom tempo, e com essa mesma galera, não há diversidade. Não tem diversidade de um montão de coisa. E hoje eu sinto que já tá mudando. Já está. Nossas crianças já estão grandes. Elas já estão aí, bem ali na frente, desfazendo a piscina de perna de pau. Então, tipo, tem esse lugar assim, né? De pensar que às vezes é difícil, Às vezes a gente briga porque uma piscina tá fechada, porque a gente acha que a piscina vai estar aberta. Mas também tem esse outro lado da convivência, da pessoa que vem de fora e compartilha outros ensinamentos. Então, para mim, essa convenção está sendo massa por isso, porque tem bastante gente nova. Então tem um ar fresco assim, de novidade e de gente com energia, para de repente, ano que vem, outros anos sejam os novos organizadores da convenção que não se vai estagnar, né? Porque se for sempre os mesmos, as mesmas pessoas organizando, eu sinto que tem um lugar que não vai ter um sabor de novidade, né?
Marcos Uma coisa interessante que dessa convenção que há alguns anos tem uma clave que passa de organização para a outra. E na última o pessoal de São Paulo pegou lá de Goiás e ela só apareceu hoje. E hoje eu vi ela pela última vez. Até coloquei ela em destaque lá para todo mundo olhar que a gente está se despedindo dela e vai para Brasília ano que vem. E de ver ela, eu já fiquei imaginando, "nossa, daqui um ano eu vou ver ela de novo". Deu essa continuidade. E não tem a organização. É inexistente a organização, não tem uma liderança, a convenção brasileira. Ela passa espontaneamente. A pessoa faz o melhor que pode, faz o melhor que pode. E isso eu acho que é muito legal. Acho que por isso que ela está com vida longa.
Jamie Ótimo. Então vocês têm, sei lá, esperanças, visões do futuro, como que desenvolver mais sua prática de arte ou produção? O que vê como objetivo de crescimento?
Cristina Na verdade assim o meu pensamento de circo, nesse sentido de crescimento, eu acredito que tem a ver também com algo um pouco mais amplo, que é o próprio relacionar-se com o poder público e o que nós temos e oferecemos. O que nós estamos oferecendo para as cidades em que nós vamos. Por exemplo, a convenção está aqui em Vinhedo, mas nós estivemos num lugar onde teve algumas questões que talvez não fossem as melhores para a situação de estar aproveitando. Então, acredito que pensar como é que os lugares que recebem o circo possam realmente entender o que é essa prática e não ver essa arte como algo que tem que ficar calada até certo ponto do horário, porque na verdade, ali e bagunça não. Nós somos artistas, nós estamos fazendo espetáculo e ampliar realmente esse abraço do poder público. Por exemplo, permissões, botar os alvarás que realmente valem. Até certa hora você vai poder fazer isso, essa atividade e tal, liberar espaços adequados para que a gente possa utilizar, ter nossos equipamentos sonorizados, quem sabe? Para a gente poder fazer as nossas práticas com mais liberdade. Eu acho que existe uma relação aí que a gente também deveria ter essa troca com algo que é o poder público também.
Emerson Sim, eu acho que é bem esse lugar mesmo, né? Porque imagina, a gente é sempre taxado de circense, itinerante, muito doido. E aí eles esquecem que hoje a gente tem universidade de circo, a gente tem diversas escolas de circo, tem circos itinerantes, tem circos de família, de rua. Acho que são várias vertentes. E eu acho que uma das coisas é essa. Tipo, a gente escreveu os editais, a gente tá em conselhos de cultura como circense, porque você vai vendo que a gente vai mostrando a cara, né? E aí há um respeito em si. Uma vez eu organizei uma convenção que a gente foi conversar com o Secretário de Cultura. Ele perguntou se a gente ia fazer rave lá dentro. E aí eu falei como o circo também está englobado com a Rave também, né? E tipo, eu nem sou de rave, eu nem sou da rave. Ele vai ter rave lá. A gente falou, "Não, não vai, rave não." Porque é uma das coisas que eles pensam também, de que o circo tá com a rave. Então, tipo, acho que é mostrar pra essa galera nosso espaço de que respeite a nossa forma de criar, de como aqui mesmo com a coisa do som. Isso foi tipo, não até 22h00, pô, mas é um evento que precisa de mais horas, de mais espaço para que a galera possa tomar uma piscina tranquila, descansar depois ir assistir uma apresentação para que as apresentações não precisa ser uma seguida atrás das outras.
E para mim também isso cabe também a organização se posicionar. Isso também, né? Porque às vezes a gente está muito "sim senhor, sim, senhor, claro, claro". E às vezes a gente não tá afim de bater cabeça e às vezes a gente precisa bater cabeça e não eleger esse lugar também e falar, "ué, tá, não vai, tá bom, valeu". E negociar com essas pessoas também, de poder falar e de poder mostrar o circo não só como um circo tradicional. Porque as pessoas pensam que a gente é de família de circo, que todo mundo aqui vive na mesma lona, que todo mundo está morando no mesmo trailer. E não acho que aqui é uma outra vivência do circo, porém, desse lado do contemporâneo, porque não são pessoas de família. Então, acho que é isso. A gente tem que mostrar para a sociedade também, para esses órgãos, para esses lugares, que o circo tem o seu espaço, tem sua diversidade e tem sua forma de falar, a sua linguagem. E para que eles não fiquem inventando ideias na cabeça deles. Esse circo que eles acham que acredito que existe, né?
Marcos Para dar um recado para o pessoal do futuro, né? Eu acho que o melhor recado para o pessoal do futuro é o que tinha na contra na capa daquele livro do Guia do Mochileiro das Galáxias. Tava escrito assim “Don’t panic” como a mensagem é essa, "Não entre em pânico", porque vendo uma coisa, quando passou a pandemia, foi quando a gente parou a convenção num ano. Eu pensei que não ia voltar mais a convenção. Eu pensei que ia emendar uma pandemia depois da outra e talvez até emende mesmo. Talvez a gente esteja vivendo um hiato entre coisas muito ruins, assim, porque eu vejo isso. Eu acho que o futuro não vai ser tão legal assim e ele talvez não tenha que ser se ele for igual do que é hoje. É certo que não vai ser legal no futuro. E daí eu fico pensando o quanto o circo tem essa missão, né? O circo. Eu fico pensando muito nisso. Circo é pra criança. A gente fica entre adultos aqui, mas quem vê circo, o circo é pra criança. O adulto pode se divertir também. E eu acho que é aí que a gente toca um pouco o futuro.
Eu acho que o circo tem uma missão no mundo. Vão vir outras pandemias, eu acredito. Ainda vão vir outras coisas no mundo. E eu e a gente está junto como convenção. Foi muito importante. O Beco mesmo na academia, a gente fez uma o acolhimento do Circus, que estavam mal, que estavam bem. Eu acho que não dá pra ninguém ter obrigação nenhuma de pensar em política ou pensar alguma coisa mais revolucionária, mas o circo cabe muito bem a isso. Circo consegue juntar muitas pessoas e eu acho que igual o circo do século passado, só se importava com a bilheteria. E eu entendo esse importe com bilheteria, né? Se a gente tá precisando comer, mas acho que superando isso, eu acho que o circo tem uma outra missão de agrupar as pessoas, de trazer pensamentos mais progressistas. Não que eu ache que a gente tenha, mas isso de inclusão, de mostrar outras formas. Eu acho que se tem uma coisa que eu o circo sempre quis fazer isso. Senão você já fez, já fez tudo que podia ser feito. Eu acho que tem coisas novas virão.
Emerson Também daí sai o circo de escolas também, né? Se a gente for pensar numa geração agora, de pelo menos uns 15 anos para cá, o ganho de escolas de circo para pessoas periféricas no Paraná, por exemplo, é um estado que incentiva [00:10:00] para caramba a escola de circo. Tem um festival lá em Campo Mourão que eles colam mais ou menos cinco escolas de circo que sempre está renovando as crianças. E depois eles, os jovens, adultos e tipo, por exemplo, tem cinco rapazes que eu conheço que estão agora no Circo de Soleil e começaram numa escola lá no Paraná, no interior. Então é bem esse lugar também do círculo social desse acolhimento.
Cristin Pegando esse gancho seu, uma coisa que eu tenho em mim também como expectativa para o futuro é que a gente tenha uma faculdade específica de circo. A gente quando vai para a universidade, geralmente a gente vai fazer artes cênicas, teatro. E aí nós puxamos a nossa linha para o lado do circo. Mas eu acho que no futuro eu acho que a gente tem que ter uma faculdade específica para circo.
Jamie É isso. O circo é uma profissão, né? E também é saúde, é terapia, é comunidade, é família, saúde mental, comunitária, física. Claro que trabalha muito o corpo. Aí tem que ter esses cuidados, né? A segurança em todos os aspectos. Então eu vejo o potencial e realmente não tem o respeito que merece nas instituições formais, né? De acadêmicos, nos governos, que trata como coisa de rua, de vagabundo, e não vê o valor que leva para não só as pessoas, mas os bairros, as gerações futuras. E seria ótimo também viver do circo de uma maneira digna, como merece, como artista profissional. Então eu agradeço muito sua participação, compartilhar suas experiências. Eu quero levar essas experiências para outros públicos que possam ouvir e [00:12:00] entender, porque tudo isso é importante, o que leva para para o mundo em geral. Obrigada pelo esforço de vocês.
Cristina Obrigada.
Jamie Agradeço a organização do Circo no Beco da Convenção Brasileiro de Malabarismo e Circo por aceitar nosso podcast com a oficina na convenção. Também agradeço o produtor do podcast e o técnico Jonatas Campelo, a co-criadora do projeto e a tradutora Amanda Talbot. Também agradeço Cristina Macedo, Emerson Noise e Marcos Gil por participar nessa entrevista. E também a Penn State University, a universidade onde eu atuo como professora e onde atualmente estou finalizando essa gravação e edição do áudio. Então esse projeto conta com muitos apoiadores com muitas pessoas que adoram a cultura brasileira e que querem fazer ampliar esse contexto para o mundo afora para ouvintes em inglês. Então lembrando que temos as traduções e as transcrições de todas nossas entrevistas em nosso site www.brazilcultureconnections.com. Estamos em todas as plataformas de podcast e no instagram também @brazilcultureconnections. Por favor compartilhem nas redes, comente e muito obrigada pelo apoio.