Temporada.2, Ep.1:

O grito das ruas

com Eder Muniz (Calangoss)

TRANSCRIÇÃO EM PORTUGUÊS

Jamie Lee Andreson Bem-vindes ao podcast bilíngue, Conexões Culturais Brasil. Nessa plataforma, conversamos sobre manifestações culturais brasileiras e suas extensões no mundo. Meu nome é Jamie Lee Andreson, e sou facilitadora dessas conversas. Com esse episódio, estamos lançando nossa segunda temporada, Arte e cultura nas periferias. Nessa série, concentramos nos contextos urbanos através de conversas com agentes culturais atuando nas periferias brasileiras. Para esse primeiro episódio, “O grito da rua”, conversei presencialmente com o artista visual, Eder Muniz, conhecido como Calangoss nas ruas de Salvador da Bahia. 


Bom dia! Estamos aqui presencialmente pela primeira vez com Eder Muniz, conhecido como Calangoss: artista visual, soteropolitano. Então, bom dia Eder. Pra começar, pode se apresentar para nossos ouvintes? Como começou sua jornada com o graffiti e a arte de rua?  

Eder “Calangoss” Muniz Oi galera, bom dia. É uma honra estar aqui pra poder participar nessa entrevista desse podcast. Eu sou Eder Muniz, conhecido nas ruas como Calangoss. E começo a trabalhar com a arte de rua especificamente com a pixação em ‘96 aqui em Salvador, simplesmente porque eu sou de família católica. Então pra ter noção do que estou falando, toda doutrina e repressão que sofre um jovem com uma religião tão fechada assim e também de escola pública onde o acesso à arte e cultura é bem restrito. Então a forma que encontrei de me manifestar, de me expressar, foi através da pixação, coisa que eu via nas ruas do meu bairro, Vila Canária Castelo Branco. E sempre me intrigou muito saber, entender, imaginar como aquilo acontecia. Eu já via pronto, eu não via fazendo, parecia na rua e para mim aquilo ali era mágico, era tipo um fungo que nasce. Então meus primeiros trabalhos foram na escola, no banheiro. Eu pixava o banheiro, depois eu pixei a igreja também que eu frequentava. E por causa da pixação eu fui expulso da escola e da igreja também. Esses dois órgãos, que servem para “educar”--não sei–ou te enquadrar. Então basicamente me libertou, me libertou dessas amarras, que a gente nasce livre e a gente vai sendo amarrado porque infelizmente os pais—eu sou pai então eu tenho consciência disso—a gente não tem noção de o que é educar um filho. A gente até tenta aprender, se a gente se esforça muito, né, e os pais, né, a sociedade acabam amarrando essa nova criança, esse novo ser que vem a esse planeta. E aconteceu isso comigo. A pixação—-a arte de rua––me deu liberdade.

J Que bom. Que bom que achou essa saída porque muitos não encontram. E essa temporada, eu estou assim tendo foco nas periferias como um contexto social e geográfico urbano para levar esses contextos para um mundo maior que já está. Você já está, as artes brasileiras já estão internacionalmente, mas o público que consome muitas vezes não entende o contexto que vem. Então é isso que eu quero ampliar para os nossos ouvintes. Então em sua experiência de vida e carreira, como se define a periferia como contexto social e geográfico urbano?


C Não tem como falar de periferia, de comunidade, de favela, se a gente não falar de escravidão ao povo negro. É onde a gente foi jogado, a gente não gosta de usar a palavra “gueto” porque é uma palavra que a gente sabe que foi um lugar criado para jogar os judeus, para excluir, uma população, um povo, uma etnia. Mas a favela nem foi criada, a periferia quem criou foi a gente, foi o que sobrou para a gente. Então há um caos nisso, porque não há organização, não há uma construção, um estudo, um projeto pra isso. Então a gente acaba tendo um impacto ambiental muito grande numa cidade, a periferia tem que ter consciência disso. E também a organização de um bairro né. Há beleza nisso também porque é uma coisa orgânica. De lá nasce vários projetos arquitetônicos. Assim, de você imaginar como as pessoas acham soluções pra construir. Isso também é um desafio, tem essa parte. Então aquela dualidade na verdade, viver na periferia. E o periférico, ele quer sair daquela situação porque ele está mais exposto. A ter um filho na periferia assim, como minha família, por exemplo, que minha mãe não queria que a gente brincasse nas ruas, pra não se envolver com tráfico de droga, com crime, né, então também a gente fica à margem. Periferia normalmente, normalmente não, o significado é esse: você está à margem daquele centro. E a gente tá à margem da educação, à margem dos órgãos de cultura da cidade, que estão sempre no centro. De um parque para você ter uma hora de lazer com a sua família, a gente não tem isso, né. Então a periferia é usada, continua sendo a escravidão, porque é usada só a mão de obra. Então ser um jovem periférico negro e conseguir viver do meu trabalho, da minha arte, é tipo assim um ato político isso e só tive consciência disso muito tempo depois de ter uma certa maturidade. Mas que através dessa arte também que me levou a ter essa maturidade. E hoje tenho o maior orgulho de ser periférico. Eu moro na periferia de Salvador, da Vila Canária por opção minha. Porque eu não quero ficar distante daquela realidade. Porque eu não posso cantar o que eu não vivo, o que eu não sinto. Sabe? Então quero ter essa consciência. É o lugar também que eu cresci. Tenho 30 anos, tenho mais de 30 anos na verdade, tenho 39, tem 34 anos que moro no mesmo bairro. Então as pessoas me conhecem. Sei que nessa transição várias pessoas já morreram, as pessoas já se mudaram lá pro bairro, mas a maioria me conhece. Então há um respeito e também sabe que eu tenho um cuidado pelo meu bairro. Eu pinto no meu bairro há muito tempo. Há vinte anos praticamente que pinto no meu bairro. Então meu bairro é uma galeria também. Eu tenho um impacto grande de eventos, de convites que a gente faz para outros artistas, até de pessoas de fora desse intercâmbio, desde Nova Iorque a Angola, como já pintou lá no bairro, outros estados também, pintam lá no bairro também pessoas de outros estados, outros artistas, então eu acho que a periferia tem muito potencial, super potencial. A periferia alimenta toda a cidade, mas esse reconhecimento por parte do governo e da elite que é pendente. Só quer usar a periferia, só quer usar o povo e não quer reconhecer a arte que esse povo tem pra dar, tem um valor. É… fazer graffiti na periferia também é dá exemplo para a nova geração que se pode viver de seu sonho. Sabe, você não precisa ser mão de obra. Eu não tô falando que vai ser fácil não, isso aqui não é romance, não. É o maior pau, mas você pode viver do que você acredita. 


J É, você dá esse exemplo para muitos. E assim, do meu ponto de vista, a periferia é o centro da cultura brasileira. Mas não tem os recursos, fica às margens da mídia, por exemplo, as instituições não dão apoio, mas ao mesmo tempo que nasce tudo que é brasileiro mesmo, assim que é até celebrado no exterior, mas essas celebrações não chegam em forma de recursos ou apoio que precisa pra realmente crescer e ter mais acesso…



"A periferia alimenta toda a cidade, mas esse reconhecimento por parte do governo e da elite que é pendente. Só quer usar a periferia, só quer usar o povo e não quer reconhecer a arte que esse povo tem pra dar, tem um valor. 

Eder Muniz (Calangoss)

Eder Muniz em frente de um dos seus painéis na sua cidade natal, Salvador, Bahia. 

C Vamos dar um exemplo claro disso aí, o carnaval. O carnaval é essa manifestação, a maior festa do mundo. Salvador tem a maior festa do mundo, depois eu acho que vem Rio, vem Recife. E quem que ganha dinheiro com o carnaval?


J Não é os afoxés, por exemplo…


C Não é quem faz o carnaval. Quem ganha dinheiro com o carnaval são os brancos, são as empresas. 


J Os patrocinadores…


C E que não querem nem pagar para quem trabalha para o carnaval. Porque várias pessoas trabalham o carnaval todo e depois não recebe pelo trabalho que fez. Tô falando do cara que tá na corda, sabe, segurando tranco ali. Porra! Se não pagar, aquela esmola que você dá para o cara, não quer nem pagar a esmola que você dá para o cara. As pessoas são mesquinhas. E esse estado de escravidão existe e é nítido e todo mundo sabe. E isso acontece, a mesma coisa com o graffiti. Quem tá ganhando dinheiro hoje com graffiti? 


J Eu não sei. 


C São os brancos. São os brancos porque pra você estar numa galeria, tá no museu, fazer viagens. Normalmente quem aparece são os caras brancos. Constata isso aí. Eu nem vou dar nomes aqui sabe porque acho chato, antiético. Mas se você olhar pra quem tá ganhando dinheiro com graffiti, ganhando dinheiro mesmo, que não tá morto, mas já ganhou, mas já tá morto e alguma galeria ganha por ele hoje. Tá ligado? Então é isso, a gente tem que acordar, que a gente tem o valor nas mãos e não tem consciência desse valor. E tem alguém tirando vantagem da gente. 


J Isso é geral nas artes. Não apenas na arte visual. 

 Então estou conhecendo você ao longo de um ano, dois anos, mas na verdade, eu fiz intercâmbio em 2011 em Salvador. E você já tava no ACBEU [Associação Cultural Estados Unidos] fazendo mural. Enfim, estou admirando de longe, e eu identifico que você tem um modo de viver que está relacionado à sua arte, né. Não pode separar um do outro. Então pode compartilhar alguns elementos que compõem essa inspiração de seus trabalhos e/ou seu modo de viver? 



C Quando comecei a cogitar a fazer graffiti, né, porque há degraus assim, há uma escada, né, quando você começa a fazer graffiti. Tipo assim, a pixação é o estudo das letras, de um alfabeto, né, esse estudo, esse universo. Quando comecei a pensar em fazer graffiti já é outro universo, das formas dos desenhos, das cores. A primeira vez que vi alguém fazendo um trabalho de graffiti não foi nem com spray, foi com compressor e reproduziu uma obra de Salvador Dalí, “A tentação de São Pedro”, eu acho, que é os elefantes passando com as pernas longas assim. Aquilo me pirou, porque nem sabia que era Dalí na época, mas também de ver aquela tinta saindo daquela máquina daquela forma, forma de ar. Só aquilo ali me bugou assim na época foi na primeira vez acho que em ‘99 para ‘98 e falei: “Quero fazer isso aí. Eu quero fazer isso aí.” Eu tô falando que é graffiti porque foi na rua. Graffiti não é uma técnica. Graffiti é uma cultura. Essa é a diferença de quando você fala, “Ah, é graffiti quando tá na galeria, quando tá no museu?” Pra mim não é. Graffiti é atitude, é o momento, né, que você está fazendo trabalho na rua que você interage com aquele espaço público, com as pessoas, com o ambiente. Aquilo é graffiti. É o momento. É o evento. Então aquele evento que eu via acontecendo me encantou. E aí quando eu pensei em fazer um trabalho de graffiti foi com o Marcelo Verme, que era um pixador bem conhecido em Salvador, né, perseguido pela mídia. Os caras falavam dele na mídia, no jornal de meio dia. E Marcelo sempre foi um cara bem autêntico. Sempre quis fazer diferença. E a cultura em volta do graffiti sempre foi ligado à cultura hip hop. Então os grafiteiros de Salvador reproduziam muitos estilos da Europa, dos Estados Unidos, que era sempre pintar o DJ, o BBoy, o MC, o letrado, e não tinha algo assim nosso. A exposição também, ao conhecimento fora de Salvador era restrito, a gente não tinha internet, chegava aqui através das revistas, pra quem tinha acesso de alguém que vinha de fora, que tinha um pouco de dinheiro também. Então nosso primeiro trabalho foi sobre o êxodo rural. Porque era algo nosso. Meu pai passou por isso, minha família passou por isso, a família de Marcelo passou por isso também, de sair do campo para a cidade pra tentar uma vida com essa ilusão de que vai ser melhor na cidade. E quando chega na cidade, se decepciona porque é pau, é mentira, é enganação. E a gente pintou essa passagem, ele pintou pessoas saindo do campo numa carroça, né, toda a família. E eu pintei o pai e o filho já na cidade vendendo cafezinho que foi o que sobrou pra ele. A realidade, a expectativa e a realidade. E aquele chocou a cena do graffiti em Salvador, porque primeiro, era um trabalho que não tinha muitos spray porque o spray era muito caro, a gente usou muito pincel e rolinho, ou seja acrílico. E parecia mais um muralismo porque tinha uma temática diferente. E foi assim que a gente chegou na cena e foi logo notado porque tinha identidade, e eu creio que isso começou também a transformar a cena em Salvador, não só o meu trabalho e de Marcelo, mas isso também acontecia no Brasil. Você via outras pessoas em São Paulo, em Pernambuco, já dando identidade ao trabalho brasileiro, saíndo da cópia da referência norte americana e realmente criando e mostrando nossa cultura, e isso ao longo do tempo em Salvador ficou mais claro. A gente é a maior cidade onde tem—onde vivem—pessoas negras depois da África. Então cê ve os personagens daqui de Salvador o graffiti pintado na rua com muitos personagens negros, muito influência de cultura negra, isso é nítido para a gente. Como eu vi em Manaus muita questão indígena nas ruas, é um traço de identidade e isso me influencia muito, né, esse lado ancestral da cultura negra, da essência negra, mas também o lado indígena. Isso ficou mais claro pra mim quando eu viajo para Nova Iorque em 2006, que a cidade é tão concreta, parecia tanto né, aquela coisa concreta, de trem, de carro, de poluição que aquilo me fez falta ao mar, que me fez falta a mata atlântica. E aí eu comecei a trabalhar com esse tema e também por na época e até agora o tema meio ambiente era bem debatido, o footprint da humanidade no planeta, e também minha temática que abordava os seres humanos como algo principal que falava de educação, de cultura, de sexo, de drogas, que a gente voltou assim o olhar pra comunidade que a gente—a comunidade— precisava. Eu vi que a comunidade precisa, mas que a essência de tudo é você respeitar os outros seres. Se você respeitar os outros seres, você vai se respeitar, você vai se amar, sabe, e vi que o ser humano na verdade não é vítima, ele está vitimando os outros seres. Então foi aí que minha chave virou, eu acho que transcendeu a mensagem do trabalho. E aí eu comecei quando voltei para Salvador em 2009, mas já voltei com esse trabalho. E estava acontecendo na época uma destruição na Paralela para criar o Alphaville, tipo assim criar uma nova cidade em Salvador. E foi algo assim realmente imposto, empurrado em goela abaixo pelo prefeito antigo. Vou até falar o nome dele aqui porque ele deve pra gente e ele trabalhou para a gente, que é o João Henrique e ele passou esse projeto no Natal quando ninguém podia protestar. Então foi algo estratégico, sabe. E eu chegando em Salvador sobrevoando antes de pousar. Você via o buraco na Paralela. E era nossa última parte da mata atlântica na cidade, sabe. 



"Graffiti não é uma técnica. Graffiti é uma cultura. Essa é a diferença de quando você fala, “Ah, é graffiti quando tá na galeria, quando tá no museu?” Pra mim não é. Graffiti é atitude, é o momento, né, que você está fazendo trabalho na rua que você interage com aquele espaço público, com as pessoas, com o ambiente. Aquilo é graffiti. É o momento. É o evento." 

- Eder Muniz (Calangoss)

J Sim, com rios também, né? 


C É um impacto ambiental. Você cria uma muralha de prédios num caminho que vem o vento do mar, sabe, coisas que você não se estuda. É tipo assim, é só ambição mesmo, e o que ele ganhou com isso. Se falava na época de malas de dinheiro pra pagar suborno, né, por esses prédios, por esses construtores.


J Que são comunidades exclusivas, né? Que fazem parte da, como chama, gentrificação?


C Gentrificação, gentrificação. Essa foi a verticalização de Salvador, né, uma parte da verticalização de Salvador na Paralela. Foi radical. Então eu vi isso, cheguei em Salvador já com essa cabeça, com essa consciência. Meu primeiro trabalho que eu fiz foi na Paralela mesmo, e eu eu pintei duas pilastras de um viaduto onde a pilastra tinha os pássaros bem bonitos, bem coloridos. E na pilastra seguinte tinha uma frase: “Plante um prédio, desabrigue a Mata Atlântica.” A frase foi apagada no dia seguinte.


J Sim, perigoso, né? 


C Porque causava um desconforto pra quem estava comprando, pra quem estava construindo de assumir essa realidade. Então eu comecei a ver que tipo o bonito dos pássaros podia ficar nas ruas. Então comecei também a entender a estratégia do trabalho pra conquistar também outros lugares. Tipo é super colorido, é super bonito, mas por trás tem uma mensagem forte também. Tem um apelo também. Então foi isso que eu comecei a fazer. As pessoas se iludem pela beleza, mas depois passam uma vez, passam duas e se pergunta: “Porra, aquela viagem ali é intrigante véi, o que que tem a ver um cara com a cabeça de pássaro?” Sabe, e as pessoas normalmente vão pro óbvio que é, me perguntar: “O que é aquilo ali?” “O que é que você sente? O que é que você vê ali?” “Ah, é um homem com cabeça de pássaro.” –“Sim. Isso te leva pra onde?”.


J Sim, faz refletir. 


C Então é essa coisa que gera uma inquietude nas pessoas e geram perguntas, e é a coisa da arte. A sensibilidade que é negada. Quando você vê arte, você se sensibiliza e você se coloca no lugar do outro, do outro ser. Se você não passa por isso, você só cumpre a sua agenda, você só é agenda, você é máquina. A gente passa por um momento na humanidade, a quarta a evolução industrial, que o ser humano é empurrado para ser máquina—


J —E descartável, né. 


C —E se você descansar, você é fraco, você está errado, sabe. A competição é essa, é você cumprir a sua agenda o máximo que você pode fazer em um dia pra mostrar para o outro o que você fez hoje. 


Produtividade…


Então é essa questão que é arte também que eu procuro levar pro trabalho.


J Eu tenho tantas perguntas mas eu vou tentar concentrar aqui. Porque tem perguntas sobre o graffiti em si, tipo é legal entre ásperas, como você lida com fazer todo dia um trabalho, você é tão prolífico assim e também apaga, né, tão rápido. Você já citou em conversas anteriores sobre “Paredes Vivas”. Então como é isso, como você trabalha com isso, se entrega um pouco né, muito na verdade.



"A sensibilidade que é negada. Quando você vê arte, você se sensibiliza e você se coloca no lugar do outro, do outro ser. Se você não passa por isso, você só cumpre a sua agenda, você só é agenda, você é máquina." 


- Eder Muniz (Calangoss)

C É um processo que né, que, primeiro, a pixação te leva a você ter esse desapego, né, porque a pixação incomoda, é a arte indigesta né, é o que a sociedade não entende e quer logo descartar, quer logo apagar. “Apaga isso! Eu não sei o que ele está falando.” E a pixação é realmente pra criar esse desconforto, porque há alguém descontente. Se você tem seu carro, tem seu apartamento, tem seu trabalho legal, mas é em cima de alguém, você não está pagando alguém bem. Tá ligado? Cê tá explorando de alguém, se ligou? E aí há falta né na educação, falta na cultura, na infraestrutura de um bairro, se ligou, então a pixação é essa pergunta, né, essa interrogação. Tá faltando pra quem? Tá tirando de onde isso aqui? Então por aí a gente já desapega porque sabe que não vai durar muito tempo quando cê bota uma frase numa igreja mesmo, acusando ela de compartilhar com a escravidão, com genocídio, cê sabe que aquilo não vai durar muito tempo. Né? Quando você ataca o governo, sabe que não vai durar muito tempo. Então por aí você já começa a ter o desapego. Quando cê faz graffiti, a maioria dos trabalhos é illegal também. É um muro abandonado, é um muro que ninguém cuida. A gente procura esses muros para ter um argumento também de conseguir legalizar isso porque o proprietário—porra irmão—estava suja aqui, a gente mora na comunidade, a gente cuida da comunidade, a gente cuida da cidade. Aí você consegue vencer. Até para também chegar até o proprietário às vezes antes com esse argumento, porra, se seu muro tá aí. A gente vai pintar seu muro sem cobrar nada. Vai embelezar por toda a comunidade e tal. É um trabalho voluntário. Então a gente vai criando essas estratégias e também não sabe quanto vai durar porque o cara pode vir e colocar um cartaz em cima de uma banda, né, de comercial, um político. Então, de uma carta de búzio porque tem uma figura atacando diretamente em Salvador com cartazes gigantes, faz tarot, sabe? Uma pilantra. Então você começa a entrar nesse ritmo, né. E também o trabalho pra mim, ele tem uma validade, porra. Depois de dois anos, três anos, sabe, eu já não penso mais, sabe, a minha estética, a minha técnica já mudou. Pelo menos estou buscando isso. Eu busco isso no meu trabalho. Que se eu me acostumar com o que eu fazia a dez anos atrás, e continuar fazendo agora, porra, tô parado no tempo velho. Então eu quero que meu trabalho naquele bairro já seja a nova versão de Eder.


J Sim, você mesmo pinta em cima e faz de novo né? 


C Eu pinto em cima e faço de novo. A maioria já está descascando né, então nesse processo já. É o cuidado que eu tenho. Para mim, os trabalhos são filhos. Você não abandona o filho. Eu passo, eu cuido dos trabalhos, eu passo, eu olho, se tiver um cartaz ou alguma coisa, eu tiro, sabe, eu ligo pra algum amigo meu e falo, “Porra velho, no seu bairro aí véi um cara colou um cartaz tira aí na moral véi, na moral véi. Como é que tá o trabalho aí, tal legal ainda?” Então há uma assistência no trabalho, né. E eu sei o preço, o valor disso. E gosto que as pessoas também acostumem–ou melhor–acompanhem na verdade esse processo de transformação, porra. Calangoss de 2006 não é o Calangoss, esteticamente falando, a mensagem, a mensagem é a mesma. O que eu procuro no meu trabalho é que seja bem diverso pra eu não me acomodar que se possa ver de um sapo, a flor, um ser humano…. mas que se consegue reconhecer e independente do que seja pintado—porque normalmente não é assinado—se consegue reconhecer pela mensagem, pela essência. Minha busca é essa, sabe, é uma busca que eu me cobro muito nisso, ter personalidade, ter identidade no trabalho, que as pessoas hoje falam assim: “Porra velho! Eu consigo ver que é você”, não está nem assinado mas só pela paleta de cores, sabe, já sinto que é você.”



"O que eu procuro no meu trabalho é que seja bem diverso pra eu não me acomodar que se possa ver de um sapo, a flor, um ser humano…. mas que se consegue reconhecer e independente do que seja pintado—porque normalmente não é assinado—se consegue reconhecer pela mensagem, pela essência."

 - Eder Muniz (Calangoss)

Calangoss fazendo grafitti nas ruas de Salvador

J Por temático também, a temática…


C Eu gosto de passar sabe, e o trabalho tipo assim, estar vivo, ele tá vivo por si, sabe, ele já dialoga com a população, eu fui pintar agora uns trabalhos, renovar uns trabalhos e as pessoas do bairro reclamaram. “Porra! Cê vai cobrir! Eu vejo isso aí todos os dias! Não! Não! Não cubra não”. Eu falei, “Calma, eu não vou apagar. Eu vou renovar, transformar.” “Ah! Ah!” Tipo assim cê vê que tem uma relação com, por isso que é graffiti, tem uma relação com a vida de alguém ali, de várias pessoas.


J É, de muitos. Como alguém que acompanha Salvador que eu já morei aqui, mas também passeei muito e pra mim não existe Salvador sem Calangoss porque em todo lugar, todo lugar, pra quem não conhece aqui, você deve ter um mapeamento dessa cidade que eu nem posso imaginar. Você lembra de todos os locais dos trabalhos e…?


C Eu lembro sim, porque também eu fotografo tudo também e eu procuro conhecer minha cidade muito, e o graffiti que facilitou isso porque me dá uma desculpa pra poder ir em bairros que normalmente não iria, né. E a gente tá passando por um momento delicado em Salvador. Acho que é a nível nacional, na verdade, das facções, né, de um bairro não poder entrar em outro bairro porque são facções rivais. E hoje mais do que nunca, sabe, o graffiti te dá essa moral de você entrar pela arte, ou seja, até nesta instância, cê tem esse passaporte. Mas claro, cê tem que estar alerta, né, porque alguém também pode querer usar você pra poder atingir a outra facção. Tipo como aconteceu com músico aqui no Brasil e em São Paulo. Mataram ele só pra causar uma dor na comunidade porque sabia que ele era muito importante para a comunidade. Então também você tem que ficar jogando né. Saber, mas o graffiti te facilita isso, proporciona isso pra você. 


J Eu queria dar um espaço pra você compartilhar sobre um mural marcante na sua trajetória aqui em Salvador, porque tem tantos. Mas se puder elaborar um pouco mais sobre o processo, porque foi marcante?


C Eu creio que meu primeiro mural no Empena aqui em Salvador, na lateral de um prédio, foi bem marcante pra mim porque eu já tinha feito isso fora do país, né, mas não tinha tido a oportunidade de fazer isso na minha cidade. Eu queria muito presentear a cidade com isso. Então aconteceu o projeto mural, no bairro do Comércio, onde contemplou um bairro com dez painéis de artistas da cidade, artistas locais, da escolha pela Escola de Belas Artes os grafiteiros. E esse painel foi um desafio, primeiro por ser grande—foi meu maior mural na época—


J —Mmhmm. Eu já estou sabendo qual é—


C —E também pela temática porque o pessoal da produtora, né, me pediu que fosse ligado à história de Salvador, né, nossa origem afro… E a maioria dos painéis eram feitos em volta disso. Eu falei, “vou falar de algo que vem antes dos negros chegarem aqui, que vem da essência dessa terra”. E falei da origem do povo originário dessa terra que deu nome a vários lugares desta terra, que tinha uma relação antes da invasão. E eu falei sobre os indígenas e essa relação próxima que a gente tinha com outros seres, com os peixes, com as árvores, com as flores, com fauna e flora. Então é um rosto que agrega tudo isso no rosto. É multicolorido assim, parece um arco-íris e ficou no lugar bem localizado ao lado do mar, e quando você passa na avenida, você pega ele de frente. Então ele tá te olhando de frente. Eu dei essa sorte de ter aquele painel, e o nome daquele painel é o Coração da Latinoamérica. Então, é um apelo também para toda Latinoamérica, que é só usado como algo de exploração por outros países. Continua nesse papel. Estamos em 2022, sabe, a gente não discute o papel da Inglaterra no mundo, que é quem mais suga do mundo assim… 


J Ainda!


C Ainda, sabe? Essa reparação do ouro que foi tirado da América Latina nunca foi feita. Sabe? E aí quando você fala… Você nem pode falar das igrejas, a igreja católica, sem você ser atacado—


J A censura, né?



"E falei da origem do povo originário dessa terra que deu nome a vários lugares desta terra, que tinha uma relação antes da invasão. E eu falei sobre os indígenas e essa relação próxima que a gente tinha com outros seres, com os peixes, com as árvores, com as flores, com fauna e flora. Então é um rosto que agrega tudo isso no rosto." 


  - Eder Muniz (Calangoss)

C É. Sabe? Essa discussão, essa reparação, não se fala. Eu abrir a boca hoje com o Papa e falar que hoje me desculpo pros os indígenas e pros os negros, sabe como que você se desculpa? Quando você abre os seus cofres e você paga pros filhos deles poderem ir para a universidade, pra reparar o que você fez, o que você tirou deles. É assim. Não é de blablabla e demagogia, não. Tá ligado? Porque é tudo fake ali. Sabe? Porque se fosse real mesmo, agora mesmo que teve uma enchente gigante no Sul da Bahia. Você não vê a igreja abrir o cofre dela pra bancar alguma coisa. “A gente vai rezar por vocês.” Porra de rezar meu irmão! Abre os cofres e quem tem que pagar isso não são os fiéis, não, que já estão passando necessidade. Estamos em uma pandemia há dois anos. A galera já está com uma corda no pescoço e tem que pagar ainda, fazer doações. Tá ligado? Enquanto a igreja é rica, velho, sabe? Mas o povo é tão ignorante que ainda acha que é obrigação deles. E é disso que eles se valem, sabe, dessa ignorância de propósito, porque eles falam o órgão público as escolas, né, a verba das escolas, porque hoje estudar, pelo menos aqui em Salvador, é uma mentira, é uma mentira estudar numa escola pública hoje. É só número. Os caras só querem número pra poder provar, como diz, pra o inglês ver. Sabe? Eles querem que as pessoas obtenham curso básico, curso técnico, pra eles poderem saber usar a máquina. Não saber fazer a máquina e entender o que é a máquina, é o que estão fazendo com você. Então é isso que fazem com o Brasil até hoje. 


J É, e muitos saem da escola por causa disso, né. 


C Porra! Há por exemplo o mesmo de um pixador que foi assinado aqui em 2020. O Skunk. Tá em nosso livro Ruas Salvador, né, a gente sofreu muito com isso porque era um cara com um potencial incrível. Depois quando fui ver o acervo dele, os estudos dele, o cara tinha um estudo super profundo com relação à caligrafia, a caligrafia marginal, o cara foi ceifado como uma estatística mesmo, um jovem da periferia preto. Eu acho que ele tinha uns 26 anos na época, se ele tivesse muito... Ele não teve nem a chance realmente de amadurecer. Sustentava a mãe dele, era um cara que dava exemplo, a mãe e o irmão dele. A mãe dele era solteira. Se ligou? E não teve chance de viver do trabalho dele. E me coloquei no lugar dele porque eu sou desse mesmo lugar, velho. 


J Teme a sua vida fazendo seu trabalho? 


C Hoje nem tanto porque o trabalho é bem conhecido. Não subo, não saio à noite como o Skunk fazia. O trabalho dele tinha um pouco mais de desafio, pouco não, um desafio radical. Tá ligado? Protestar como ele protestava, né, se colocar a sua vida jurídica e sua vida física em risco, né. E hoje a gente entende também que foi uma viagem também de estar no lugar do tráfico de drogas, ser confundido como ladrão. A gente tem várias teorias, mas é isso.


J Sabemos que quem critica a sociedade brasileira, quem tem o poder de mudar as coisas também, se torna alvo.


C É, com certeza, com certeza. Porque incomoda.


J E tem a potência de realmente transformar a sociedade, como Mariele [Franco] né, por exemplo.  


C Sim, sim.


J Mais duas perguntinhas. Já conversamos sobre os desafios que enfrenta. Eu acho que são nítidos, mas eu queria dar um tempo para você destacar mais em tempos recentes, o que está passando com a sociedade, a política brasileira?


C Acho que a gente está num momento bem grave com relação à política no Brasil que afeta tudo, né. Falar de moral, falar de valores, falar de religião, economia. Eu acho que foi necessário o brasileiro passar por isso. Eu acho que a gente—acho não—creio que a gente se camuflava e guardava esse racismo, esse preconceito, né. E teve a chance de mostrar que a gente é, a gente mostrou.


J Os Estados Unidos também se mostrou.



C É a nível mundial, a nível mundial, é um momento do mundo e expondo isso. Eu acho que também a gente tem a chance de ser bem positivo assim, bem otimista. Mas tem a chance de poder sanar isso. Isso claro que não no nível geral, porque cada um está no seu momento. O tempo é relativo para muita gente, muitas coisas, mas passar por esse momento delicado da política, que ataca as artes, a cultura de forma assim direta, tirando recursos mesmo dos artistas, dos editais, do suporte que existia. E numa pandemia onde tudo ficou três vezes mais caro. Falo tudo de andar de ônibus—eu ando de ônibus ainda, viu gente?—a comer coisas que você comia naturalmente né.


J A comida está demais, e tem mais fome também por causa disso.


C Então a gente está vivendo um momento delicado. Há um stress muito grande, porque as pessoas estão passando fome, de necessidade mesmo e isso deixa todo mundo inquieto, inconformado, porque você tem em casa um filho passando fome. Não é nem você, é seu filho passando fome. Não é uma coisa fácil de lidar. Então o ambiente de roubo também cresceu de uma forma absurda, a violência doméstica, né. Eu acho que nunca foi pior contra as mulheres, né. Então, tem muita gente passando muito tempo em casa e nessa cena, sabe, de passar dificuldade, né? Então, a atenção é muito maior. Então, o grafiteiro nesse momento, é difícil manter o trabalho na rua, porque a gente tem família. A gente não está falando, sabe? Acho que as pessoas imaginam que o grafiteiro é aquele cara jovem né, que está passando pela adolescência e por isso que ele faz isso— 


J —Rebelde. 


C Não. A gente tem…o livro foi lançado Ruas Salvador. Conta a trajetória, a trajetória da arte de rua em Salvador, da pixação ao graffiti. São três décadas. Então, tem pessoas que têm 40 anos, têm 50 anos, sabe, que têm família constituída que paga seu IPVA, que paga seu aluguel, que têm três filhos e dão educação para os filhos, sabe. Então manter o luxo do graffiti para toda uma sociedade é difícil. Porque quem mora na Barra à Cajazeiras, à Cidade Baixa, tem graffiti. Agora, o valor que dá para isso ainda é muito baixo em Salvador, né, tipo viver do graffiti em Salvador é muito difícil. Tem que fazer outras coisas. Eu procuro fazer outras coisas relacionadas com arte, desde audiovisual, a ilustração, a moda, porque se eu viver só de painéis, não dá, não vira. Em outros lugares do Brasil, já rola, já é natural isso. Há um mercado para isso, mas em Salvador não há esse mercado. E também os artistas não se valorizam para manter tipo assim um teto, um valor, né, que seja justo e digno para o artista. Então é tipo, eu tive que…eu tô fazendo uma campanha na minha página no Instagram, estou rifando, que é uma coisa bem popular aqui em Salvador, né, que rolam as rifas dos bairros, e as pessoas conseguem girar o dinheiro, né, de uma forma rápida e eficaz. Eu vi isso e fiz isso com uns trabalhos meus, porque eu pinto aqui as telas para a exposição, uma tela de R$13.500, R$4.600, R$7.000. Eu nunca vendi aqui em Salvador; sempre vendo para estrangeiros. Então dá a chance de você poder adquirir um trabalho nesse valor por 20 R$, por 10 R$, para tentar a sua sorte. E você vai também estar apoiando o trabalho na rua continuar, porque estou comprando o material com esse trabalho estou pagando a gasolina, pagando a minha alimentação na rua, quando eu estou pintando. Então de uma forma ou de outra, sabe, eu estou facilitando, flexibilizando de você ter acesso à arte, sabe, eu tenho plena consciência disso, sabe, que…Porra, cê poder ganhar um trabalho desse, colocar em sua casa, você vai influenciar na sua casa, os seus filhos, a sua família ser igual.


J As visitas também. 


C Cê ligou? É coisa que…o periférico não tem acesso a ter um trabalho original de um artista local. Sabe ele com—


J —O vidro, o quadro preservado, né.


C Não, ele tem reproduções que ele compra no mercado, que é uma coisa que não tem nem relação, é só pela estética. Às vezes é bem bizarro, tá ligado?


J Pouca qualidade?


C É bem bizarro. Então, tem essa, essa chance.

"Procuro também que essa essência que eu falei antes, afro-indígena, seja presente e que a questão também espiritual esteja presente nos meus trabalhos, porque eu quero que aquele trabalho esteja vivo e como um ser, né, qualquer outro ser não é só a coisa física, tem o espiritual também para ter vida, ter a magia, ter um encantamento." 


  - Eder Muniz (Calangoss)

J Ô. E você tem tanta criatividade e expande sua arte de tantas maneiras, tantas formas para ser acessível, mas também pra ter o reconhecimento mundial que merece. E aí, pra fechar, eu queria saber, como você atua nesse cenário internacional? Como é que você leva esse contexto de Salvador para o mundo?


C Eu acho que faz a diferença, né? Eu tenho várias influências. Eu não posso negar isso. Algumas são do Brasil, outras da minha cidade, do meu estado, mas procuro também que essa essência que eu falei antes, afro-indígena, seja presente e que a questão também espiritual esteja presente nos meus trabalhos, porque eu quero que aquele trabalho esteja vivo e como um ser, né, qualquer outro ser não é só a coisa física, tem o espiritual também para ter vida, ter a magia, ter um encantamento. Eu acho que essa é a diferença do meu trabalho. Não é só uma questão estética, né, tem um ritual ali que eu faço quando estou pintando, né. É uma dança, né, celebração pra ele nascer. Quem já me viu pintando tem essa, essa consciência. E é o que me alimenta. É como você falou, eu não consigo separar o meu trabalho do que eu sou, do que eu faço, sabe, pra mim tem essa relação, tem essa verdade, né. Respiro isso, como isso 24 horas. Eu acho que deve ser até chato assim viver comigo. Procuro não falar com as pessoas em eventos sobre meu trabalho. Normalmente são elas que iniciam as perguntas—


J Tipo, explica…né?


C E aí eu falo, “Porra, cê quer falar disso mesmo velho?”


J A arte fala por si.


C Eu já vivo isso 24 horas, tipo assim vou acabar sendo chato que eu vou estar falando de novo. Eu não gosto que fiquem em volta de mim, o trabalho fala por si. Então vamos falar de outra coisa que tem a ver com trabalho. Vou falar de filosofia, de política, sabe, que tem a ver com o trabalho, mas falar do trabalho diretamente. Às vezes eu acho que é muito oportunista.


J Ou redundância, né.


C É, é.


J Espero que essa conversa seja ampla pra você.


C Tá massa, a gente tá falando de tudo. Eu tenho um cuidado do egocentrismo. Tenho esse cuidado. Eu não sou um cara humilde. Eu procuro estudo. Tento ser, ter esse lugar de estar aberto. Eu acho que humilde é isso. Você estar aberto às coisas entrarem em você. Eu tento, não consigo sempre. E é isso que o trabalho me ensinou. Por isso também que eu gosto de interagir com muitas pessoas, porque é o momento de eu sair da minha bolha, né, quando você interage com as pessoas. Você tem que lidar com o jeito que ele pinta com o tempo, né, e nessa maratona de renovar os painéis aqui em Salvador, eu estou convidando várias pessoas para gente fazer trabalhos coletivos. Justamente para me tirar da minha zona de conforto, sabe, para mim desafiar a fazer o trabalho diferente, né, porque eu sei que tal pessoa trabalha assim, como é que eu posso interagir com ele para não ficar tão distante, sabe, para ter um diálogo, né, não ser só estético, ter um diálogo. Então eu estou me propondo isso também. E isso é a questão da idade. Eu digo pra quem está chegando agora – “O que que eu posso fazer? Como é que é isso?” Velho, estude a sua mensagem, porque o resto, sabe? Depois que você entender a sua mensagem, sabe? Tudo o que você vê assim em volta as referências vai acontecer de acordo com o que você transcendeu. Tá ligado? Não é o contrário. Você vai escolher a imagem antes da mensagem. Tá ligado? A mensagem que vai escolher suas imagens. Vão se relacionar com as suas imagens. Isso pra mim veio com o tempo. Eu não tive ninguém pra me dizer isso. Tá ligado? Então, porra pra mim, sabe, isso é uma luz. Se a pessoa entender que eu estou falando aqui, vai ajudar muito. Vai adiantar o lado pra caralho. 

J E é a sua marca, né, não é comercial, mas é uma identidade.


C É uma identidade. É o que uma amiga minha que trabalha com arte, é curadora, ela fala: “Porra, Eder, é difícil às vezes você sair na rua”--eu vejo o lado dela, vejo o lado de quem faz –“e ver sabe tanta coisa ruim”. Eu entendo porque realmente é um nível muito primário pra algumas pessoas que estão explorando na rua. Não têm o cuidado de estudar antes em casa.


J É um laboratório, né. 


C É um laboratório. Mas eu tive o cuidado de explorar meu bairro antes de sair para o Centro, porque eu sabia que eu não tinha nível para expor meu trabalho daquela forma. Mas com essa coisa também da influência das mídias da internet, não sei que, todo mundo quer ser famoso e quer ser muito rápido, sabe? Então não se dá o tempo. 


J Só ter seguidores, né.


C Sabe, e quer disputar com quem já está aí há 20 anos, sabe? E acha que você não é humilde porque não quer pintar com ele, não dá apoio a ele. Velho, as coisas são conquistadas. Naturalmente são conquistadas, sabe. Você cria, você constrói seu trabalho, você não chega pronto, não, cê constrói seu trabalho, então é isso. Se você conseguir entender o que você precisa desse tempo, desse estudo, agora eu entendo como é que você vai cobrar de uma pessoa se isso? Se nunca foi oferecido isso pra ela. É tipo a gente tá falando hoje sobre a questão do pagode. Que, porra, tá um nível muito baixo, as letras são horríveis. Aquilo ali pra mim, sabe, e a pixação também, é o termômetro do que está sendo oferecido para o jovem da periferia. Se você oferece merda, você vai querer receber o que? Pérola? Não vai receber pérola, porra, porque você sabe que está oferecendo merda à galera sabe? É o tempo todo. Você só vê na televisão violência, sabe,é comercial de comprar, então as músicas são em relações ostentação o tempo todo, e sexo, e eu quero ganhar. É porque é isso que está sendo oferecido. 


J Os valores, né?


C E é de modo geral. A religião também só oferece isso, sabe? Você barganhar com Deus para você, pra Deus dar alguma coisa na sua vida, eu estou orando porque ele vai me dar, sabe. Essa barganha é dos dois lados, porra! Você vai querer que a sociedade te dê o que?

 

J É, é uma transação, mas a vida é muito mais que isso. 


C Felizmente.


J Você leva isso pra um público maior. 


Agradeço muito por sentar mais uma vez porque eu sei que você já fez tantas entrevistas, né. Pode acompanhar os materiais sobre Eder Muniz, Calangoss. Tem nas redes, tem artigos, tem vídeos, tem diariamente postagens também de seus trabalhos no Instagram, né, que mais usa. 


C Muito obrigada pelo apoio.


J Eu só quero agradecer. Foi ótimo também trocar essas ideias presencialmente, né? Isso foi importante, e eu tenho tantas outras perguntas, mas eu não vou perder mais seu tempo. Tem muitas informações acessíveis sobre Eder Muniz, e eu sei que já teve uma carreira longa e vai ter muito mais no futuro.


C Só queria agradecer por esse espaço. Cada chance que a gente tem de falar é diferente, né, pelo momento, pela pessoa que troca uma ideia. E também são momentos diferentes da minha vida também, né? Hoje eu tenho um pouco mais de consciência, que é pouco mesmo, sabe, eu quero falar que o que eu compartilhei aqui, as informações, é meu olhar nesse momento na minha vida. Não há dogmas aqui, não é a verdade absoluta, é a minha vivência—como eu vivi. E cada um vive de sua forma, não há uma fórmula, não há uma fórmula, você cria sua fórmula. Às vezes funciona pra mais de uma pessoa, viu gente, às vezes não funciona. Tem que criar a sua. E é isso aí. É como a pedagogia. Cada aluno tem a sua diferente, tem gente que aprende ouvindo, tem gente que aprende falando, né? Então obrigado.


J São perspectivas. E eu tenho o prazer de compartilhar a sua perspectiva de vida, de trabalho, de contexto que vêm das periferias de Salvador.


Esse episódio foi gravado presencialmente entre Jamie Lee e Eder Muniz em Salvador da Bahia, fevereiro 2022. Não esqueça de curtir, compartilhar e fazer uma resenha de nosso podcast. Todas as transcrições e traduções das entrevistas estão disponíveis em nosso site www.brazilcultureconnections.com. Agradeço o apoio de nossa equipe – a tradutora Amanda Talbot – o técnico Jonatas Borges Campelo e o Departamento de Pedagogia Digital da Universidade Estadual de Pensilvânia, o Penn State University.

 

A música se chama “Hero” por Noah Muteb com uso livre.

Muito obrigada e até o próximo.