S.2 Ep. 4 

Arte popular como ferramenta política

TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA

Jamie Lee Andreson, PhD (JA) Bem-vindes ao podcast Conexões Culturais Brasil. Estamos aqui presentes realmente com Ruy Braga e Jonatas Campelo. Eu sou a criadora do podcast Jamie Lee Andreson e estamos gravando presencialmente na Universidade Estadual de Pensilvânia. É um prazer receber Ruy Braga. Prazer. Quarto episódio da temporada Arte e Cultura nas periferias. Ruy Braga é professor titular do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos Todos os Direitos da Cidadania. Têm publicado os livros A Rebeldia do Precariado, Trabalho e Neoliberalismo no Sul Global e A Política do Precariado, do Populismo à Hegemonia Lulista


É um prazer receber você aqui e termos Jonatas Borges Campelo que eu vou dar o espaço para ele se apresentar como integrante da equipe do podcast Conexões Culturais Brasil


Jonatas Campelo (JC) Olá a todos! Meu nome é Jonatas. Como a Jamie falou, sou integrante do podcast, desde o início, na manutenção e na organização da imagem do podcast, do website do podcast. Também sou artista circense, mas comecei meu trabalho nas artes fazendo arte de rua no Brasil. Tenho 12 anos produzindo arte de rua no Brasil e América do Sul. Atualmente estou aqui na Pensilvânia ajudando Jaime no podcast. E é isso aí. 


JA E no tema da segunda temporada, eu quero começar com uma reflexão de vocês sobre centros e periferias brasileiras a partir de seu lugar social e suas experiências. No caso de Ruy, no contexto, hoje em São Paulo é a USP e no caso de Jonatas, da Bahia e as experiências com a arte de rua. Vamos começar com o clipe, por favor. 


Dr. Ruy Braga, Professor de Sociologia na Universidade de São Paulo(USP), Professor visitante na Pennsylvania State University 
Jonatas Campelo, artista circense, baiano e fundador da empresa Palhaço Capvara

Ruy Braga, PhD (RB) Maravilha! Antes de mais nada agradecer ao Jonatas pela oportunidade de estar aqui participando do podcast. Bem, essa primeira questão é muito fascinante, na minha opinião e ao mesmo tempo muito conveniente por diferentes razões. E eu acho que a primeira delas é que ela causa a mim ao menos o espanto. E esse espanto tem muito a ver com o fato de que essa separação, essa dicotomia entre centro e periferia é surpreendentemente recente na história das cidades brasileiras e tem muito a ver com o processo de socialização e de colonização que acompanha a industrialização brasileira nos anos 30, 40, 50, 60, enfim, porque quando você observa a historiografia literatura é muito raro e quase inexistente a ideia de periferia. Por exemplo, nos anos 20, 30, 40, na cidade de São Paulo, quer dizer, se você olhar os jornais, você nunca vai encontrar essa, esse tema, essa noção associada ao fato de que são áreas definidas por uma ausência, ou seja, não são o centro. Então era muito mais como na época em que tinha até a década de 30 você se referir ao centro da cidade e a bairros, mas nunca à periferia. 


A outra forma muito comum de se referir àquilo que não estava no centro, nos bairros, era a área rural ou o bairro rural. Então você tinha uma espécie de separação entre a cidade e o campo, ou a cidade e o bairro rural, os bairros, o bairro rural. E eu digo que é fascinante, porque essa ideia de periferia, ela é uma construção basicamente da classe trabalhadora brasileira, quer dizer, é um produto. A periferia, as periferias, a periferização é um produto do processo de industrialização no Brasil. Por que? Porque as indústrias que se integram a esse segundo ciclo industrializado, elas tendem a se concentrar em áreas que não eram áreas urbanas. E isso cria uma espécie de nova configuração do território da cidade. 


Então você abandona aquela ideia de área rural, não a abandona totalmente, diga se de passagem. Porque se você for pra São Paulo hoje né, e quem conhece um pouco São Paulo sabe do que estou falando. Se você descer até o Engenheiro 


Marsilac, como o pessoal diz lá em Engenheiro, mais lá no Marsilac, que é uma região do extremo sul da cidade, você vai perceber que ainda tem aquela configuração rural muito presente, inclusive o bairro rural, e tinha as cachoeiras, as matas, etc. Não está totalmente abandonado, seria injusto dizer isso, mas é uma nova configuração que assume, por assim dizer, o controle da cidade. E por que eu digo que é uma produção de periferia, uma produção da classe trabalhadora, porque está muito associado ao processo de ocupação e autoconstrução que se dá nos anos 40, 50, 60. Eu conheço um exemplo mais de perto que tive oportunidade de acompanhar. Enfim, com mais, mais presença que é o caso de São Miguel Paulista. Enfim, hoje é um bairro da cidade que é uma verdadeira cidade dentro da cidade, enfim, na zona leste, que tem ainda muitas áreas estabilizadas, porém é uma cidade como outra qualquer, quer dizer, é uma cidade com comércio, com indústria, e é uma cidade que se desenvolveu em toda eletroquímica, que exatamente aquilo que acontecia no pós-Segunda Guerra no Brasil. Ou seja, monta se uma fábrica, essa fábrica traz um monte de imigrantes vindos do Nordeste, pequenas cidades de Minas, e cria se uma estrutura urbana muito precária, baseado nesse processo de ocupação, autoconstrução. Isso daí gera uma série de conflitos, uma série de tensões e pela mobilização popular as famílias, as comunidades que estão instaladas ali em torno dessa fábrica, iniciam uma longa trajetória de humanização. 


Então, tudo aquilo que você vê hoje em São Miguel, por exemplo, é produto dessa luta popular. Enfim, pela regularização dos lotes, pela expansão do transporte, pela ampliação dos serviços, pela instalação de escolas, de postos de saúde, de creches, depois de hospitais, enfim, tudo aquilo que você verifica hoje que existe em termos de infraestrutura urbana foi basicamente produto da luta popular, e produto da mobilização desses trabalhadores e trabalhadoras que foram se instalando neste momento. Então, quando você fala em periferia, a primeira coisa que te vem à mente hoje em dia tem a ver com essas áreas propriamente de ocupação e autoconstrução que moldaram a cara da cidade nos anos do pós guerra, nas décadas do pós guerra, anos 50, 60, 70 e que eram áreas tidas como problemáticas pela cidade, pelo centro. E por quê? Porque eram áreas consideradas violentas, eram áreas consideradas carentes de infraestrutura e áreas consideradas degradantes para as famílias viverem. Eram áreas consideradas, vamos dizer assim, inadequadas para si, para se morar, quando, na verdade, o que se verificava era um processo de intensa luta dessas comunidades, exatamente por alcançar minimamente as condições de igualdade que você verificava no centro da cidade, seja a cidade dos ricos e a cidade dos pobres, dos trabalhadores. Então é uma luta por igualdade.


Mas tem um outro elemento também, que é nisso eu entro aqui no tema da nossa discussão, que eu acho que vale a pena muito mencionar. É que a periferia, em especial a periferia de São Paulo, mas não apenas porque esse é um modelo que se espalha pelo país todo, de urbanização e de interação, enfim, com essas comunidades e com a cultura que se produz nesses lugares, espaços, nesses territórios. A periferia é uma reconfiguração da periferia em termos de prestígio hoje no Brasil, em termos de potência criativa, em termos de produção de cultura, tem muito a ver com essa luta dos anos 80, 90, pelo reconhecimento de que aquelas comunidades não são áreas carentes, de que aquelas comunidades não são áreas degradantes, aquelas comunidades, elas efetivamente lutam por igualdade e elas têm uma forte pujança cultural. Talvez o exemplo em São Paulo seguramente o exemplo mais típico dessa mudança de chave, por assim dizer, de um de um espaço que é considerado um espaço marcado apenas e tão somente por carências, por desigualdades, por degradações, por violência, etc. para um espaço que ganhou o coração e as mentes dos jovens, das famílias de classe média e ganhou o mundo todo, o país e o mundo. 


Foi o caso do Racionais MC's, que na sua trajetória ao longo de tantas décadas, conseguiu capturar e produzir um, vamos dizer assim, uma espécie de nova onda criativa. E instigou, estimulou e produziu, enfim, vamos dizer assim, e criou uma nova configuração cultural, porque fez com que o centro reconhecesse a potência criativa artística da periferia. Então foi uma espécie de guinada de aquilo que, no caso do Rio, tem mais a ver com o samba e agora, mais recentemente, com essas manifestações de cultura periférica, mais associadas aí ao happy do hip hop e coisas do estilo, mas não apenas, enfim, também música de quebrada, tudo aquilo, tudo aquilo que a gente vê. Isso aí tem muito a ver com, na minha opinião, com, vamos dizer assim, o exemplo do Racionais MC's, que eu pessoalmente gosto muito porque foi a primeira vez. É claro que você vê isso sempre, isso é sempre muito controverso, mas enfim. Mas foi a primeira vez que o jovem preto periférico, ele se viu como um agente que fazia parte de um movimento cultural de massa, ou seja, que não era uma coisa localizada, era uma coisa do bairro, era uma coisa, enfim, muito paroquial. Era um movimento de massa, um movimento que ganha o país, que conquista, que se…que se calcifica. Vamos assim na mídia e assim por diante. Então, eu acho que tem tudo a ver com isso. A ideia de periferia hoje em São Paulo, principalmente, mas não apenas exclusivamente, tem a ver com isso. Tem a ver com, por um lado, o trabalho, ou seja, a classe trabalhadora que moldou, que constitui e construiu essas comunidades que não estão localizadas no centro e, por outro lado, essa cultura pujante que colocou, recolocou, ou seja, coloca de uma outra forma a periferia na mídia, a vamos assim nos jornais, na cultura de um modo geral. 

Jonatas Campelo em espetáculo de rua na sua cidade natal de Camaçari com seu primeiro grupo, o Trupe Treco, 2013.

JA E Jonatas, assim. Vocês vêm de lugares tão distintos em São Paulo. É tão enorme que um contexto específico que tem muita diferença com a Bahia. E você, Jonatas, vem de uma cidade menor, mas atua muito em Salvador. Então, como você vê essa questão de centro e periferia em termos de sua produção artística? 


JC É pensar em Salvador, a divisão perfeita que Salvador é quando se fala de periferia e centro, que é a Cidade Alta e Cidade Baixa. A gente tem a cidade baixa, uma grande periferia ali, reunindo vários bairros de Salvador. Eu digo que é um dos maiores polos culturais e como você falou, é a classe trabalhadora, é o que faz a capital baiana ter esse peso de poder se movimentar, ter essa energia que Salvador tem. Mas uma coisa que me chamou atenção nessa colocação é uma comparação muito legal mesmo, que é a do Racionais e do rap. Eu fiz parte do movimento hip hop Brasil e dentro desse movimento a gente fazia tipo um mapeamento dos estados, onde o movimento hip hop estava muito mais forte e São Paulo é um pólo do rap nacional e sempre foi com grandes nomes do rap, de RZO, Sabotagem e Racionais e hoje com os novos nomes do rap. 


RB E tinha a gravadora Zimbabwe. Talvez por isso…


JC Sim, sim. E tem hoje os novos nomes, temos hoje o Emicida, que está sendo não só um rapper, mas está sendo uma figura intelectual preta e periférica. Vem da periferia de São Paulo. Uma das coisas que eu fiquei assim sem um pouco entender no contexto de sua explicação, é que a periferia em São Paulo, ela existe e denominamos isso como favela, como quebrada. A gente mora na quebrada ou na periferia. Pra mim, a palavra periferia também é novo. Porque tanto cresci morando na quebrada, ou morando na favela, ou morando no bairro tal. Então, assim, eu cresci muito com essa “periferia” muito pejorativa para dizer “sou da periferia”, quel é, da favela. É pejorativo, mas é algo de se orgulhar assim. Tipo venho da favela, por meio do meu espaço de trabalho. 


JA Depende de quem tava falando. 


JC Isso. Aí depende também…


JA Seu lugar de fala.


JC O lugar de fala. E o centro pra mim sempre foi um espaço como realmente sentir trabalho. Eu nunca vi um centro como… Eu sempre fui no centro da cidade, eu sempre me senti um peixe fora d'água. Eu entro em um shopping, eu me sinto assim, tipo, o que está acontecendo aqui? Se eu entro em algum espaço assim do centro, eu me sinto jamais… A gente morou no centro de Salvador durante um tempo e nesse período que eu estava morando no centro, eu não tava bem, a gente morava E aí a gente mudou para o centrão mesmo, mais um centro mais periférico, que já foi a divisão da Cidade Alta e a Cidade Baixa, que é o bairro Dois de Julho, e que é um bairro que tem assim um peso cultural muito forte, que vinha da boemia. Era um bairro boêmio, que se transformou em um bairro periférico, que com o passar dos tempos, as pessoas mudaram, foram para a Barra, foram os lugares mais próximos à costa para…por causa do ambiente, que é muito mais favorável. E aí eu tenho essa linha assim de pensamento sobre o centro e a periferia, é muito parecido, assim, realmente quem mora na periferia somos nós, os trabalhadores são quem constrói todo o processo. Brasil, né, tem… E quem mora no centro é a galera que realmente disponibiliza do espaço para que nós, da periferia, possa atuar. Hoje eu vejo nessa linha assim, eu, mesmo morando aqui hoje nos Estados Unidos, eu digo sempre que sempre vou ser periferia, eu sempre vou ser gueto, eu sempre vou estar com minha linguagem mais periférica, mais gueto do que mais centro, mais pessoa do centro da cidade. Por mais que tenha esse processo de formação, eu vivo da arte no centro da cidade. Então a comunicação é o centro da cidade. Mas a vivência, o aprendizado, a disciplina, tudo isso é a periferia que dá, é a quebrada que dá. Que eu acho que é esse é o grande boom, sabe? E que na verdade, tanto essa disciplina, tanta disciplina que a periferia dá a nós, que acaba deixando a nós meio, deixa nós tímido, né? Cria uma timidez de relacionamento, de se colocar, de expandir até, até acreditar de que não é possível. É diferente disso, da realidade do centro. O centro, ele já tem aquela ideia das pessoas que moram no centro, convivem no centro do que tudo é possível, porque eu vejo isso. O que é possível, é possível. E a periferia tem esse negócio de que é possível o que já está ali e que o que está ali é o trabalho. Então eu vou ao centro pra trabalhar, porque é o que está ali, e voltar pra minha casa. Eu acredito assim. A periferia tem, eu digo sempre vou ser sempre periferia, independente do lugar que esteja, porque essa é a essência de saber se cuidar, porque a periferia, ela dá essa disciplina também para que se cuide em qualquer lugar que você esteja.


JA Perfeito, então é sua identidade, né? 


JC Isso.


JA Mesmo circulando o mundo, ou a cidade, né? Sempre tem essa referência. E uma coisa que concordamos é que a arte é produzida nas periferias, mas nem sempre têm acesso aos centros, que são os lugares de, que tem os espaços, do governo. 


JC Isso. Mas aí entra uma questão: o Rio de Janeiro, que é uma coisa muito diferente assim pra mim, não só o Rio de Janeiro, como na Bahia e São Paulo também, quando se trata do carnaval, né? Onde a periferia vai para o centro, toda a periferia toma o centro, né? Mas eles estão tomando o centro como ocupação cultural, porque esse vê a Sapucaí. As escolas de samba estão dentro das periferias. E assim, o centro e a elite do centro vão pra Sapucaí para assistir o desfile da periferia. E então assim tem essa, essa, essa minha. Olha, eu penso assim a periferia é o polo cultural brasileiro mesmo, sabe?


RB Concordo integralmente. Aliás, a periferia é o centro da produção cultural artística brasileira. Sempre foi, num certo sentido, e o samba é uma demonstração de isso o carnaval. Mas continua sendo mais do que nunca, né? E eu acho que nesse sentido, inclusive, tem uma coisa que você citou e eu concordo bastante que tem a ver com essa ideia da identidade periférica da produção desse sujeito periférico e que tem desafiado essa fronteira com o centro da cidade. Não apenas o desafio de você ir todo dia trabalhar no centro, que também continua muito, muito frequente. Infelizmente, as unidades de pergunta estão sendo, as pessoas são obrigadas a deslocar várias horas, mas existe um elemento que a gente deve considerar que é exatamente esse elemento de que através da cultura, não do trabalho, menos do trabalho. Apesar de que, quando você observa a evolução, o desenvolvimento dos bairros mais periféricos, você percebe que existe, até certo ponto, uma descentralização por conta da economia, uma descentralização das oportunidades de emprego. Então não é tão verdade assim. Ainda é, mas não é tão como já foi no passado que as melhores oportunidades estão sempre no centro da cidade. Porque você já desenvolveu ali, como disse, uma economia de serviços nos bairros, você já tem ali o comércio, você já tem ali a manutenção, você tem serviços profissionais mais ou menos especializados. E essas tecnologias de informação permitem que as pessoas produzam em casa para consigam onde assim produzir, inclusive artisticamente em casa, então, você já tem uma descentralização.


Mas ainda existe com muita frequência essa saída ne, talvez não tanto pelo trabalho no sentido mais tradicional, trampo o dia a dia, o trabalho assalariado, o trabalho formal principalmente, que está mais concentrado, sem dúvida nenhuma no centro da cidade, mas pela cultura, pela produção cultural. E nesse sentido, a periferia virou o centro, ou pelo menos é o centro de produção e, consequentemente, de atenção da cena cultural artística brasileira. Quer dizer, hoje em dia é muito, é muito estranho você falar em alta cultura ou cultura popular num país em que você tem tantas mestiçagens, tantas, tantas sínteses, tantas sobreposições entre a produção artística que vem das periferias e aquilo que circulou como mainstream há pouco tempo atrás e coisa do gênero né. O próprio Emicida tem um pouco a ver com isso, esse momento de mestiçagem e de misturar, enfim, influências do centro, da periferia. 


Como você tem toda razão, essas identidades, elas são fluidas–ou sejam–elas tendem a acompanhar, não é, a circulação do afeto desses sujeitos. Ou seja, as pessoas estão na periferia, estão vivendo, estão se reproduzindo, estão constituindo e construindo as suas vidas e as suas comunidades, as suas famílias né, e elas desejam se transformar. Vamos assim, no centro, pelo menos das suas próprias vidas né, que é esse sentido de autodeterminação que você verifica nas comunidades. E isso envolve, entre outras coisas, a cultura, o lazer, o trabalho e assim por diante. 


Como as pessoas, os trabalhadores, as pessoas que vivem na periferia de São Paulo gostam de debater, gostam de cultura, gostam de teoria, gostam de livros, gostam de teatro, gostam de cinema, gostam de enfim, e como elas se sentem em alguma medida, como eu posso dizer, segregadas pelo fato de que você não tem um investimento em infraestrutura cultural na periferia, você não tem grandes teatros sendo construídos, você não tem grandes cinemas sendo construídos a não ser um shopping. Enfim, elas se sentem carentes dessa, desse direito humano que é a cultura. Então eu acho que cada vez mais o que a gente precisa fazer é apostar que essa periferia, na verdade o centro da própria periferia, tem se tornado cada vez mais o centro do centro, ou seja, não tem uma fronteira muito, muito, muito nítida entre uma coisa e outra. E essa fronteira tem se tornado cada vez mais porosa. 

JC Então é só fazer uma colocação que isso que tá acontecendo realmente né porque eu sou de uma cidade que é o Camaçari. Camaçari, uma cidade que cresceu por causa do Polo Petroquímico da indústria e criou vários bairros dentro da cidade, primeiro foi criados os complexos da UBS, como Minha Casa, Minha Vida na época e depois e eu lembro que a Gleba E e o bairro onde eu cresci era o bairro mais afastado do centro. Era tipo o bairro que ninguém queria morar no bairro, mas é lindo ao redor da Gleba E foi se construindo várias periferias que são as invasões né, que começou as invasões e aí foi Parque Verde e o Phoc. E dentro dos Phoc criou vários Phocs né. 


RB Essa é a urbanização, né, o processo. 


JC É. E isso foi o que eu, você que tocou nesse assunto é isso que eu fui vendo assim que eu me lembrei dessa mudança. E a Gleba E se tornou o centro, o meu bairro, que era o bairro mais periférico que estava dentro da cidade, se tornou um segundo centro da cidade e todas as outras periferias do lado. As pessoas começaram a ir pra lá. Então tem esse lado também. Hoje as periferias estão crescendo e se adaptando, hoje a que realmente não precisa tanto ir ao centro pra poder você ter a sua monetização, sua renda ou até mesmo ter acesso a informação, essas coisas né. 


JA O que me chamou a atenção até agora na conversa é que pessoas da periferia tem que transitar o centro e o contrário, não né. As pessoas do centro raramente vão à periferia se não tiver um laço né, afetivo. 


RB Ou interesse. 


JA Ou interesse, é a exploração. E o tema principal assim para pensar na produção de cultura nas periferias e acesso aos recursos e também a relação com os governantes. Então eu queria perguntar a Ruy sobre como você acompanhou algumas mobilizações políticas dos trabalhadores de cultura em São Paulo, como a Arte Contra a Barbárie e o Movimento dos Trabalhadores da Cultura, o MTC.


RB É ótimo, ótima observação e na realidade, quando você acompanha essa, é muito interessante né, porque eu até alguns anos atrás e uma ex orientada minha, uma colega chamada Joana Marques. Nós fizemos uma espécie de pesquisa comparativa entre São Paulo e Lisboa Porto em Portugal a propósito dessa relação, enfim, entre política e cultura. Mas pensar da perspectiva de quem produz, que seja dos trabalhadores da cultura ou, enfim, daqueles que promovem a cultura nas cidades né. E a gente teve a oportunidade de verificar algumas coisas interessantes né, e que aos nossos olhos explicava muito os dilemas da produção cultural e das condições em que essa produção cultural se dá e que tem a ver com a precarização de condições de vida e de trabalho né desses profissionais que produzem cultura nas periferias né. 


No caso de Portugal é diferente, porque ele estava mais concentrado no centro urbano, enfim. Mas de qualquer forma, um desses movimentos que nós acompanhamos, que tivemos oportunidade de acompanhar, com mais, com mais, com mais detalhe né, é o Arte Contra a Barbárie, que foi um movimento artístico de resistência, a forma como o recurso público era distribuído para promoção de enfim, produtos culturais né, enfim, a forma como a Lei Rouanet era administrada pelo governo do Fernando Henrique, os critérios enfim que eram utilizados, que normalmente eram critérios muito mercantilizado, muito concentrados em alguns poucos produtores culturais e artísticos né, aqueles mais bem aparelhados, inclusive para prestar contas para o governo, os recursos recebidos e coisas do gênero. E a gente percebeu como a Arte Contra a Barbárie agregava, congregava uma quantidade enorme de grupos de teatro, de produtores artísticos, de pessoas profissionais da área da cultura, de músicos, músicos um pouco menos de fato, mas enfim. Você tinha ali uma configuração, talvez pela primeira vez, da história de São Paulo, você teve um movimento que unificava uma quantidade enorme de grupos, grupos artísticos em torno de uma pauta comum, que era exatamente a transparência e critérios, vamos dizer assim, republicanos, na distribuição de recursos públicos para promoção de cultura né de uma maneira geral, em especial no Estado de São Paulo né. 


E foi muito curioso porque essa mobilização foi vitoriosa. Quer dizer, em 2002 eles conquistaram uma, uma lei municipal que diga, digamos assim, tornava transparente, por meio de editais, a distribuição de recursos e democratizar o acesso, dos recursos públicos ligados à cultura, em especial financiados pela Lei Rouanet e coisa do estilo. 


Isso mudou a cena artística da cidade de São Paulo. Quer dizer, os grupos puderam se profissionalizar, puderam se planejar, puderam se programar e conseguiram, conquistaram apresentando projetos, conquistavam, ganhavam os editais e conseguiam se estruturar por mais tempo, por dois, três, quatro anos. Ou seja, conseguiam funcionar com mais planejamento e isso teve uma enorme repercussão. Isso aí fez parte desse movimento de valorização da cultura na periferia de São Paulo, a multiplicação de artistas, a multiplicação de músicos, a multiplicação de iniciativas culturais nas periferias, a multiplicação de uma série de coisas que nós tivemos na cidade de São Paulo ao longo desses últimos 20, 25 anos né. E com uma característica interessante que é dizer que era o fato de que eles próprios se identificavam como trabalhadores da cultura. 


JA Tem a ver com o Partido dos Trabalhadores?. 


RB Sem dúvida nenhuma que sim. Sem dúvida nenhuma que tem a ver com essa, vamos assim, com esse legado que vem dos anos 80, enfim, inclusive setores profissionais se identificando como trabalhadores. Eu, por exemplo, me considero um trabalhador da educação, apesar de ser um professor de classe média e coisa e tal, mas eu me considero um trabalhador da educação. Tem a ver um pouco essa autoidentificação, só que na outra ponta, o que eles estavam fazendo mesmo era garantir as condições materiais mínimas para continuar empreendendo. Ou seja, eles eram trabalhadores da cultura, mas o que eles faziam era uma espécie de empreendedorismo cultural. Porque? Porque nenhum deles queria se transformar, por exemplo, num funcionário público da prefeitura, que era o responsável por fazer bater o cartão e produzir cultura. Ninguém, ninguém estava falando nisso. Todo mundo queria manter a sua autonomia, a sua identidade, e vamos descer a liberdade de produzir arte conforme a sua, com o seu desejo. 


JA E Jonatas eu gostaria de ouvir sua perspectiva como empreendedor criativo, que no artigo acho que explica muito bem. Eu que acompanhei também as lutas que esse empreendedor criativo é responsável por todo o processo de produção e circulação de sua obra até alcançar o cliente final. Como é essa experiência? 


JC E, é uma coisa muito complicada de o que você está se desafiando todo o dia né. É você… é se reinventar todo dia, que é um processo nisso também que é uma reinvenção. Ou isso não deu hoje vamos fazer isso pra que isso dê certo amanhã. Meu contexto Bahia com respeito a ser um empreendedor né e ser artista, porque a gente né a gente, juntos, eu e a Jamie teve um espaço em Salvador que foi a Casa de Artes Sustentáveis, e que era um espaço de produção artística né e era como você falou, era aquele negócio de que a gente está produzindo, somos nós mesmo estamos trabalhando num processo e somos os empreendedores, né? E é difícil manter um processo desse no Brasil, especificamente Nordeste, onde tem uma falta de recurso muito grande. E é uma das coisas que acontece com a imigração artística. 


Eu tenho muitos amigos de circo que sai da Bahia e vai para São Paulo. Eu tenho um amigo que é o Anderson, ele conseguiu construir o nome dele como malabarista e agora está em São Paulo, depois que mudou pra São Paulo foi pra zona, achou um quartinho na periferia, na zona leste de São Paulo. Ficou lá na mão na zona leste e conseguiu um circo pequeno pra fazer uma performance. Esse circo pequeno deu audiência pra ele, foi pro programa do Ratinho. E aí, rodou. Como temos o outro, o Rogério também, que é malabarista também de circo, também veio dessa linha nordeste para o São Paulo, periferia e aí. 

Capvara the Clown fazendo performance na Califórnia durante o festival de Fairfax, 2019. 

JA Depois da Europa. Não? 


JC E agora está no mundo todo. África, a Europa. E é isso. E a música, a musicalidade também. Em todo tipo de arte é assim, em São Paulo tem esse peso, vamos dizer, financeiro, e de fazer com que o processo artístico ele seja desenvolvido. Talvez seja por causa até mesmo dessas manifestações que aconteceram diferente da Bahia. Eu acho que assim a Bahia, o carnaval e a musicalidade, a terra do axé, quando você vai pensar em Bahia em termos de arte, você vai pensar em trio elétrico e percussões, tambor, a dança, a dança afro. Mas não vão pensar na diversidade que tem da Bahia em termos de artes né, da cultura, e que aí é o que não tem o recurso né. O carnaval ele ainda tem um recurso. Esse artista que está no carnaval, ele ainda tem um recurso do Estado e que já foi ali amarrado aquilo ali e só eles sabem como administrar a pacotinha deles lá.


Porém, há uma grande dificuldade para o cenário cênico né de teatro, de circo, artes visuais, que insiste em uma presença muito grande na área do Nordeste, que é um pouco isso, a gente vai pro Sul, você vê se tem um teatro lotado, você vê espetáculos, artistas fazendo espetáculo de rua e se vê praças cheias. Você vai pro Nordeste e as pessoas não têm o hábito de ir ao teatro, de sentar em uma praça para assistir um espetáculo. Então isso já muda muito pela questão mesmo, eu acredito que isso tem um peso do governamental. A dificuldade dos editais na Bahia são muitas né e eu queria entender até mesmo o governo do PT quando eles sugerem abrir um edital e eles colocam dificuldade para que o proponente, o artista, o empreendedor, ele possa executar o projeto dele. E isso eu tenho por experiência, desses tempos aí né de nessas últimas gestões de governo que eu fui o cara que mais escrevia editais desse ano, dessa época, porque não consegui ganhar um e o único que eu ganhei eu perdi porque o governo queria que eu comprovasse até que eu tinha 1 R$ na conta pra mostrar que eu poderia realmente… 


RB E, é uma burocracia. 


JA É a burocracia que impede…


JC Que impede. 


JA A implementação. 


RB O Estado brasileiro é um estado que parte do princípio de que todo cidadão é um golpista querendo tirar dinheiro do governo. 


JC Exato.


JA É.


RB Então ele tem que se defender no limite, contra todas as tentativas de golpe. Então, toda vez que abre um edital, as exigências são muitas e depois que você vai prestar conta, a coisa é tão alucinada que basicamente você desiste, quer dizer. 


JA É.


RB É muito, muito…


JA Desistimos.


JC Desistimos, e foi para mim foi assim uma uma grande perda, porque foi um processo de anos produzindo atividades assim, a gente reunindo artistas do mundo, assim em Salvador. E quando chega o momento de a gente ter o reconhecimento e eu digo que não é um reconhecimento grande, é um reconhecimento pequeno do que a gente já tinha. 


JA Não é um reconhecimento. É um reembolso. 


JC Um reembolso do que a gente já tinha produzido com nosso próprio bolso né. E assim. 


RB É só uma forma de você permanecer em atividade porque...


JA Exato. 


JC Exato.


RB Porque você já está fazendo, você já está investindo, você já está colocando, já está gastando sua própria. 


JC Isso. E já tinha também, vamos dizer, uma comunidade envolvida né. Eu tinha uma comunidade envolvida, a gente tinha um trabalho social com as escolas do bairro, onde a gente levava espetáculos para escolas. A gente fazia praticamente de graça, a gente não recebia nenhum apoio de ninguém, nada. Era o apoio que a gente recebia, o que a gente fazia, a gente alugava o espaço para eventos e hospedagem e a gente criava residências artísticas que a gente trazia pessoas dos Estados Unidos para o espaço, para produzir dentro do espaço, para que a gente pudesse levar pra comunidade né atividades. 


Então assim, é uma faca de dois gumes muito doido, né, que se não souber trabalhar direito, acaba se cortando e aí se perde o primeiro corte, vê o sangue vai dizer não, eu não quero mais isso pra mim né. E o corte foi agora que a gente levou né. A gente já tinha levado um corte maior, mas levamos o corte pra agora e aí a gente parou assim pra ver e a gente falou não vamos deixar isso se acalmar e pensar no futuro, em produzir novamente. Eu sou o tipo do cara que eu sou empreendedor cara, eu sou empreendedor e gosto de criar coisas e investir nas coisas. Se não deu certo, eu crio de novo e vou ver até onde vai dar né. Então assim, eu tenho o meu sonho de montar minha escola de circo, então é uma loucura de poder comprar uma lona de circo, montar um time para montar aquele, aquela estrutura, mas é uma necessidade que antes eu pensava eu quero fazer isso em Salvador, mas Salvador tem três escolas, duas escolas de circo, uma na UFBA com um com área de, de…  Aí eu pensei por que eu não penso da minha cidade, que não tem nada né hoje na cidade, claro hoje a gente tem o segundo maior teatro da Bahia, está lá em Camaçari e a gente tem a Cidade do Saber, que foi uma que o PT levou pra pra Camaçari, com a gestão de Luiz Carlos Caetano, é uma cópia da Cidade do Saber que acontece, que tem na França né. Ele a levou para Camaçari. Então isso já mudou também um pouquinho o caráter cultural da cidade, mas não tanto né, não tanto. Eu digo assim: eu comecei um empreendimento mesmo em Camaçari né, com o Capvara. O Capvara sempre foi empresa né. O palhaço Capivara sempre foi empresa e nunca foi um artista, porque pra ser artista era tão burocrático para tirar o DRT que eu falo não, gente, porque eu preciso de um DRT para comprovar que eu sou artista. É melhor então ser CNPJ para comprovar que eu sou artista e eu sou empresário de mim mesmo, sou a produtora de mim mesmo, né? E eu faço, porque se não fosse isso, a gente não teria, não teria um rumo né assim. E dizer que ainda é difícil, não atingiu o ápice da arte ou o retorno, mas é algo que pra mim é algo que é edificante. 


Sempre que eu penso em produzir isso, eu fiz isso, sabe? Eu tava com essa pessoa, eu estava com esse, com essa pessoa, eu fiz essa pessoa. Hoje eu tenho um, dois casal de amigos colombianos, que a primeira performance deles e é uma performance incrível de suspensão capilar. Eles fazem no nosso espaço uma primeira performance pública que eles fizeram e recentemente ele me publicou, me marcou no Facebook que eles ganharam um prêmio muito grande e tava em Dubai e aí pô, tipo, pra mim isso é…


JA Estão alcançando o mundo com esse número.


JC Com esse número, com esse espetáculo, então pra mim isso já é gratificante. Pô, eu fiz né, eu ajudei num processo virar big, mas que meu processo ainda não tá big, né. 


JA Mas acho que é isso que se torna você é artista, porque você tem esse impulso de criar, sabe?


RB Claro.


JC É.


JA Independente das condições, é isso que se torna artista com mínimos recursos. E realmente é a autonomia, mesmo sem recursos, que eu acho que leva o processo artístico, porque quando...  


RB É a liberdade. 


JA É. Porque quando você vai na burocracia, você não tem como… 

RB A liberdade de criar. 

JA …se expressar. 


RB É isso, isso realmente… Eu acredito que as pessoas aprendem com os próprios erros e o próprio governo, enfim, vai de alguma forma refletir sobre esses aspectos. Hoje a gente tem uma oportunidade de ouro, porque você tem gente interessada em cultura dentro do governo federal, enfim. E também existe toda uma discussão hoje do modelo de desenvolvimento das cidades e do país, muito atrelado a tal da economia criativa. Então tem todo aí um interesse, inclusive econômico, por trás. Mas o governo tem que desburocratizar, simplificar. E ao mesmo tempo, tem que tornar essas políticas cada vez mais controladas pelos pares, ou seja, por quem produz. Porque quem produz é quem sabe, não é o burocrata de Brasília que sabe. E o que faz ou não faz sentido para você lançar uma fatura. O que acontece aqui ou ali quer dizer, são as pessoas que produzem. Então você tem que desburocratizar. Você tem que melhorar muito essa parte digital da prestação de contas. Você tem que colocar as pessoas efetivamente que entendem de produção para avaliar a prestação de contas e projetos e estabelecer protocolos e parâmetros para que isso tudo seja aprovado pelo Tribunal de Contas e pelo Judiciário. 


JA Jonatas, você tocou no assunto que eu queria ver mais. Você falou que não tem o hábito no Nordeste de ocupar as praças públicas, assistir um espetáculo. Mas eu já vi você fazer tanta roda em praça pública. Então eu queria falar sobre essa ocupação dos espaços públicos pelos artistas que eu conheço mais no contexto da Bahia, mas gostaria de ouvir mais sobre exemplos em São Paulo também. 


JC Na Bahia e não sei se também em São Paulo. Eu acredito que isso teve, durante muito tempo, uma repressão aos artistas de rua do próprio governo, de poder se manifestar, fazer suas atividades em praça pública. Tem essa dificuldade sim, na Bahia tem muito. Na maioria das vezes que eu fiz roda ou eu fiz uma atividade–a gente chama de roda, a performance de rua, foi comunicando com o governo. Nenhuma vez eu fui fazer uma intervenção, uma ocupação. Toda vez eu pedi pauta, eu pedi a cessão do espaço para poder fazer alguma performance, algum evento. E as duas vezes que eu fui, eu fui… Todos os meus materiais foram presos. Então…


JA Você foi batido uma vez também. 


JC E fui espancado pelo policial. Também fui, por estar no espaço fazendo performance. Mas o que mais que eu acho interessante nisso é que na maioria das vezes eu estou fazendo a performance na rua e não tem público. Talvez seja isso que a Jamie está tentando…


JA Você cria o público!


JC E aí, tem que ter uma jogada que um palhaço americano, o Avner fala, que é tem que ter um sim. Toda pessoa já tem um “não” pronto, ela já está dizendo não, ela não quer isso, ela sabe que você vai colocar ela numa situação de constrangimento, até mesmo de ficar parado em uma praça olhando uma pessoa. O pessoal vai dizer “não, não eu vou embora.” Então o que você está buscando ali é um “Sim”. É, esse sim, ele vai ser direto, você vai ser direto, você vai dizer pra pessoa: “Eu quero você aqui”. Você vai dizer “sim” e pronto, você não tem não, porque o seu não já foi anulado, você tá aqui. Então eu comecei a criar uma rotina de “sim”, né? E qual vai ser essa rotina de sim? Olhar para as pessoas e ver a troca de olhar que ela deu pra mim? Então ela deu uma troca de olhar para mim. Eu já entendi aquela troca de olhares, já faço uma brincadeira de aqui, um romance e crio uma história até ela ficar presa para entender o que vai vir depois, que é o espetáculo. 


E aí é uma questão de caça, de um por um. E aí vai botando um por um. Quando já tem dez, aí é a grande jogada. Tem dez ali, faz esses dez fazer a zoada de 1.000. Aplaude, grita. Aí quem tá te vendo passando do outro lado da rua, vai se integrar, vai pensar “Eu quero entender porque está fazendo zoada”. E assim se faz a manifestação, é um… é utilizar um pouquinho, pouquinho, pode criar grande voz e essa grande voz se formar, grande multidão. Essa é a estratégia. Às vezes dá certo, pode dar errado, às vezes aparece um cachorro—


JA —um bêbado—


JC Um bêbado. E salva. Eu tenho… Eu tenho uma ideia muito cristã sobre o meu espetáculo. Onde tiver um, dois ou três reunidos para ver o Capivara. 


RB Você está lá. 


JC Estarei presente. 


JA E Ruy, você tem algumas experiências assistindo ou acompanhando o grupo ou se ocupando ruas? Como são recebidas? 


RB Então, sem dúvida, quando você trabalha, por exemplo, com um movimento de mobilização política na área da cultura, você tem esse enfrentamento com o governo, porque normalmente o que você faz é o que, por exemplo, o Movimento de Trabalhadores da Cultura fez durante um bom tempo, um bom período, que é a ocupação de prédios públicos, como na famosa ocupação do prédio da Funarte de São Paulo, por exemplo. Ou seja, você tem que forçar uma situação de negociação porque… ou apresentar uma pauta, enfim, que não está sendo reconhecida ou algo do estilo, porque isso que.. é isso que o Jonatas está relatando é a regra na sociedade brasileira de dizer o que que é a regra. É um Estado que reprime aquilo que ele considera que não está na lei. Então não é que você tem, digamos, as condições para que as pessoas façam dentro da lei. Você não tem já parte de uma negação. Você não tem essas condições, mas ainda assim, você reprime quem se dispõe a entrar na lei, quem, por exemplo, quer apresentar um. Como você quer apresentar um espetáculo numa praça pública? Você quer entrar na lei? Você avisou aqui o que vai fazer? Você pediu autorização e assim por diante? E ainda assim a mão do Estado vai para te reprimir. É porque esse é o primeiro instinto desse estado que estabelece uma fronteira muito clara entre o formal e informal, entre o legal e o ilegal, entre o que pode, que não pode e só conhece a linguagem da violência política, ou seja, da repressão policial. Então isso é a regra. Então, o que na verdade normalmente se faz quando se pensa em movimento político, de trabalhador de cultura, de produtor de cultura, é tentar ampliar esse limite e fazer com que essa fronteira, ela fique mais permeável, vamos colocar assim. Como que você faz com que essa fronteira fique mais permeável? Através da conquista de políticas públicas. Ou seja, você tem que fazer com que o Estado reconheça que ele não te dá as condições para que você produza. No entanto, ele vai deixar de reprimir e, na medida do possível, daquilo que é viável. Ele vai investir, investir na produção, investir na formação, investir no espaço, investir na infraestrutura urbana, construir uma praça, um teatro, alguma coisa. Ou seja, você tem que forçar o Estado a reagir, a responder não a partir do seu primeiro instinto, que é a repressão, a violência política, mas a partir de uma política pública negociada, ainda que a duras penas, ainda que às custas de ocupações, desocupações de prédios e coisas do estilo. Porque é um pouco disso que se trata, mas existe, na minha opinião, hoje, um acúmulo. Por exemplo, na cidade de São Paulo, mais ou menos, claro, apesar de que hoje em dia você é diferente de quando eu fazia pesquisa de campo nessa área, que é uma economia solidária, por trás desses projetos de produção artística e de produção de cultura. Então você já tem hoje, por exemplo, cooperativas de artistas, você já tem hoje, por exemplo, companhias de teatro, você tem hoje grupos de música, você tem hoje produtores de slams, você tem hoje produtores artísticos que se associam e que ao se associarem, ao constituírem essas cooperativas, essas associações, fica mais fácil para que o governo as reconheça. Fica mais simples esse reconhecimento, porque já existe uma lei, já existe uma forma jurídica que consegue incorporar essa existência dos artistas. Você já tem, já tem uma espécie de divisão do trabalho, de profissionalização. Então as companhias já têm pessoas que prestam contas ou que fazem contatos ou que têm, digamos assim, têm um contato dentro da Secretaria de Cultura, dentro da Secretaria de Economia Criativa, já tem algum… Tem um trânsito ali e isso garante que o governo não irá reprimir e eventualmente, possa, inclusive, investir em projetos e coisas do estilo, né? 


JA Me parece que isso é o processo de democratização né, e também precisa de representantes no governo para mudar essas políticas que estão acontecendo no atual momento de pessoas da periferia ocupando espaços nos governos municipais, estaduais e federais. É isso que pode mudar as políticas também no serviço ao povo né. Eu tenho mais uma pergunta: qual é a função social da arte? A gente falou muito sobre dinheiro, sobre recursos, mas qual é a função social? 


JC Eu acho que a arte é uma ferramenta política muito grande e eu acho que o artista que ele, ele consegue ter visibilidade com seu trabalho, ele tem um papel muito grande social, né? E a arte ela tem esse papel. Seja um músico, ele tem o papel de levar a letra da música, a melodia, a gente falou do rap, a importância do rap hoje no cenário da musicalidade de São Paulo, né. Do mesmo jeito que no Rio de Janeiro, com o samba, a ideia de como é que fala, manter a cultura, né? A cultura periférica que a gente sabe que o samba vem ali, da periferia e que uma das coisas que une um ao outro né. 


JC O engraçado que é assim: o rap é o samba, eles são da mesma vertente. O rap, ele sai do samba quando o samba ele tem o bem bolado né, que é as rimas mais rápidas né, que é a caixinha de fósforo e os cara fazer aquela rima de troca, né. E aquilo ali era para a comunidade periférica, era um, era um único espaço, um único momento né, que era de distração, de absorver até mesmo cultura, de ouvir uma palavra nova. Então é assim, eu vejo a arte mencionando falando da música. A música, ela tem esse poder de levar a letra né, o circo, que é o meu caso, ele já tem uma arte já especifica, que ela vai falar diretamente com o público e que vai fazer uma menção política maior, que vai ser o palhaço né, que já tem uma história política também muito grande desde o início lá dos séculos iniciais né, do bobo da corte, o rei era um cara que era um segundo rei para ser ridicularizado. Então ele tinha um papel de falar com a sociedade né e mostrar a ridicularidade de um reinado também. 


JC Então eu vejo assim a arte, ela tem um papel político muito grande, e esse papel é de levar informação, de levar informação, e também eu acho que é de acalmar né, de deixar a pessoa um pouquinho mais calma, de dizer assim ó respira que esse, esse é um remédio que está precisando saber para todo esse desgaste humano você precisa ou fazer arte ou absorver arte que nós dois você está tendo um retorno bom para você em sociedade, eu penso. 


JA Ruy, tem alguma reflexão? 


RB Não, eu concordo, claro. O Jonatas enfatizou duas dimensões que me parece que estão muito presentes em qualquer definição de arte, que são a questão do poder, ou seja, a arte de desafio e poder e a questão da reflexão. A arte te faz pensar, te faz refletir. E o que está na raiz disso é o fato de que a pulsão que, enfim, a arte consegue expressar é a pulsão da negação, seja de dizer, “Olha, isso daí não é um copo”, apesar de ter a forma de um copo, de ter, enfim, se configurado como um copo e ser usado como um copo, eu vou te mostrar que isso não é um copo. E aí o artista pega isso, desmonta, remonta e fala, “Não, isso aqui é uma escultura, isso aqui é um boneco, isso aqui é uma outra coisa. Ou seja, a arte ela tem, ela consegue ter esse papel, essa função de ressignificar desconstruindo. E ao ressignificar desconstruindo, ela questiona, ela questiona as hierarquias estabelecidas, as fronteiras dadas. Ela questiona as estruturas de poder, as estruturas econômicas, as estruturas, enfim, que foram constituídas na historicamente pelas pelos embates, pelos conflitos sociais e que podem ser reconstruídas de outra maneira. Então, a arte é essa, essa pulsão negativa que aponta pro futuro, ou seja, que explora os limites e que transforma esses limites em coisas novas, enfim, e que, nesse sentido, é essencialmente utópica. Ou seja, a arte diz de algo que está presente no momento, mas não totalmente desenvolvido. Então esse copo, que é uma escultura em potencial, que é um boneco, que é um brinquedo para uma criança, tá aí, mas não está desenvolvido e o artista desenvolve esse potencial. E isso é que me parece o mais fascinante no universo artístico. Essa busca permanente por transcender, por ir além, por negar aquilo que existe, está posto, e que tem limite e fazer com que esse limite seja superado e pensado de outras formas, enfim, repensado. Enfim, eu concordo que é um pouco essa palavra, vamos dizer assim, a natureza, a essência da arte. 

Palhaço Capvara no Teatro Municipal Alberto Martins na sua cidade natal de Camaçari, Bahia, 2014

JA Lindo.


JC Eu vejo, também essa coisa de “da à criança o copo” e me fez refletir o seguinte: A arte ela é um processo muito da criança, muita criança. Então assim, eu acho que todo artista tem que ter esse seu lado infantil, esse lado criança, para ele desenvolver esse processo, esse lado artístico. Eu vejo isso tanto na música como na arte visual, como na arte cênica. Eu vejo a criança muitas das vezes, até mesmo na minhas performances. É uma criança. O Capvara é uma criança, mas é aquele negócio do jogo, né? É você jogar com a sua própria infância e transformar aquilo em um processo artístico. Então eu digo assim todo artista tem essa essência da criança quando ele começa a pensar, a criar o seu trabalho artístico, porque isso já é o imaginário da criança. Quando uma criança consegue pegar um brinquedo que não tem vida e fazer um carro que tem motor e correr um boneco que é plástico, um copo, botar os bracinhos ali aqui, virar um boneco. Então esse processo artístico é um processo de retroceder e voltar a ser criança novamente. 


JA E eu tenho o prazer e a capacidade de imaginar. A arte reflete a vida, mas também projeta outras vidas possíveis. Lindo! Gente, estamos chegando ao final da conversa. Eu tenho algumas palavras finais. 


JC Agradeço a presença de Ruy. É a minha primeira vez em podcast também. Eu acho que a gente tem que ter um diálogo assim. Eu acho que foi muito bom ter esse diálogo de dois lados da sociedade.


JA Dois lados do Brasil. 


JC E dois lados do Brasil: Sudeste e Nordeste. E pra mim é muito gratificante também estar ouvindo de você suas experiências e também com os seus pontos, seu ponto de vista. Então muito obrigado por esse momento. Agradeço a Jamie, também por me ceder o espaço.


JA Finalmente. 


RB Eu queria também agradecer muito a oportunidade daqui conversando com vocês. É um prazer enorme, meus amigos queridos.