Episódio 2: 

Cultura é uma força política

 parte 2

Part 2 - With Cleidiana Ramos 

Transcrição em Português

Jamie Bem-vindos! Bem-vindas! E bem-vindes ao podcast Conexões Culturais Brasil. Hoje eu tenho o prazer de receber Cleidiana Ramos. Ela é uma jornalista baiana, com doutorado em antropologia pela Universidade Federal da Bahia. Ela também é iaô de Oxum do Terreiro do Cobre em Salvador; atualmente está como professora visitante na UNEB, a Universidade Estadual da Bahia, o Campus XIV CATORZE- Conceição do Coité, Bahia. Ela é publisher do coletivo Flor de Dendê, especializado em Cultura Afro-Sertaneja e colunista dos coletivos de jornalismo independente Midia Ninja e Midia 4P. Recentemente passou a produzir a Coluna A Tarde Memória do Jornal A Tarde de Salvador, onde trabalhou por 17 anos na cobertura sobre questões raciais, culturas afro-brasileiras e religiões. Desde agosto integra a equipe do canal @espelhodefestas, especializado em informações sobre as festas populares da Bahia. Bem-vinda Cleidiana.  

Cleidiana Ramos covering the first mass of the Santa Dulce of the Poor in the Salvador Fonte Nova Arena 


Cleidiana Obrigada Jamie, boa tarde a todas e todos. Muito obrigada, né, por essa oportunidade. Sempre é um prazer estar com você, conversar com você, e aí ainda com, a gente está se conectando com outras pessoas, né, e é isso que é fantástico né, essas nossas pontes, né, esses nossos encontros têm sido assim, de pontes. 

J Muito obrigada pela presença, pela conexão nesses tempos de pandemia onde todos nós estamos inovando cada vez mais essas pontes, e estou muito feliz de apresentar você a novos públicos que falam inglês, né, nessas redes mundiais. Então para começar, eu queria saber um pouco de sua trajetória e como chegou a ser jornalista. 

C Geralmente a pergunta do porquê eu sou jornalista é mais difícil de responder; nunca consegui encontrar uma resposta. Mas com o tempo eu estou ficando tranquila porque eu descobri que aqui no Brasil pelo menos né, onde é bem diferente, a gente faz um curso específico, né, em comunicação social e aí tem habilitação em jornalismo como tem outras instituições que oferecem publicidade e propaganda, outro em cinema e TV. E na minha família não tem ninguém que tenha feito jornalismo, e realmente não sei por que eu fui para essa profissão. Mas o que eu posso dizer é que é uma das decisões mais acertadas que já tomei, embora muito jovem, mas é algo que amo fazer. E talvez por isso, por essa possibilidade de contar histórias, de conhecer pessoas das mais variadas procedências, temas, né. E realmente é a profissão em que me realizo. Hoje não estou totalmente mergulhada no jornalismo de redação, esse jornalismo diário, mas eu meio que me reconectei com o jornalismo. Primeiro, ensino em cursos de jornalismo, né, quer dizer eu tenho essa responsabilidade de estar ajudando a formar outras comunicadoras e comunicadores, mas também eu me aproximei porque eu tenho um coletivo com três colegas: Susana Rebouças, Meire Oliveira e Ludmila Cunha, que é a designer da Flor de Dendê, e continuo colaborando com sites de jornalismo independente. Então assim eu vou continuar fazendo jornalismo de outras formas né. Estou atuando bem mais como articulista, não necessariamente como repórter, que foi a minha formação, foi a minha ocupação durante dezessete anos no Jornal A Tarde, mas continuo conectada ao jornalismo. E foi esse jornalismo que me aproximou da minha própria, digamos assim, eu acabei de me formar como uma mulher negra. E não tem como a gente não acabar se tornando ativista porque se você leva muito a sério, e também aqui no Brasil isso é muito necessário, o que a gente chama de responsabilidade social do jornalismo. Mesmo atuando em uma mídia comercial, como foi o caso que eu atuei por mais tempo, a gente não tem como fugir de enfrentar as duras realidades de desrespeito e violência aos direitos básicos, direito à saúde, a educação, o direito à vida. E infelizmente quando a gente faz um recorte racial, um recorte de cor, são exatamente as maiores vítimas que estão com todos esses direitos violados ou negados são as exatamente as pessoas negras ou os povos originários, no caso das populações indígenas. Então essa tem sido a trajetória do Brasil, né, há mais de trezentos anos. Eu sempre digo que é como a gente estivesse preso, presas e presos eternamente no catorze de maio de 1888, o dia seguinte a abolição da escravidão. Talvez foi quando a gente, as pessoas que estavam ali respiraram e viram que aquela lei em nosso caso não tem nada, né, nem um tipo de efeito prático. A lei tem dois artigos. Um é dizendo que a escravidão estava abolida no Brasil, e o segundo era que estavam revogadas todas as disposições em contrário, mas ninguém disse o que fazer com aquelas pessoas, que essa tem sido a trajetória de todos nós descendentes de famílias negras, né. As nossas histórias de ascensão profissional, ascensão econômica são exceções ainda, e não regras. Eu fui a segunda da minha família a conseguir entrar na universidade pública. Agora tem mais, por conta do próprio sistema de ações afirmativas, mas eu fui a segunda a entrar na universidade pública da minha família após quase trinta anos, de quando meu tio materno já conseguiu entrar na universidade pública, no caso a UFBA. Né. E tinha mais dois universitários de família, mas que estavam no sistema particular. Então, essa tem sido as nossas trajetórias, então não dá pra separar muitas vezes a prática profissional do ativismo, digamos assim. 

J Obrigada por essa trajetória. É o que eu mais amo de seus trabalhos é que para mim é a história, é a antropologia, é o ativismo, é a religião, é a cultura. Você faz esses laços, né, entre todos esses temas, e eu acho muito forte. Nós também temos a conexão de ser mestras, né, do programa Pós-Afro de estudos africanos e étnicos da UFBA, e eu tive o privilégio de estar presente no lançamento da revista Flor de Dendê. Eu estava lá. Então queria saber um pouco mais sobre o que é Afro-Sertanejo e como isso faz parte também de sua história familiar. 

C Ah perfeito. Na verdade, eu saí do Jornal A Tarde em 2015, dezembro de 2015. E foi algo bem amadurecido essa saída, né. Primeiro, o jornal estava passando, é aquele momento que você sente que está na hora de dar uma guinada profissional. E também por conta de algumas críticas, o jornal vem, como o jornal impresso aqui no Brasil, o problema não é o jornalismo, é o modelo, né, são empresas familiares, né, então tudo isso tá mais ou menos conectado nesse sentido de que não se tem digamos assim, condições de fazer as mudanças que são necessárias para que essas mídias tenham fôlego. Então, já vinha o jornal e aquela coisa né, eu já estava muito incomodada, e eu resolvi sair em dezembro de 2015. Meu plano era terminar o doutorado, ainda tava fazendo doutorado, eu só defendi a tese dois anos depois. E eu trabalhei tanto no mestrado como no doutorado com o acervo do próprio jornal. O primeiro as fotografias de religiões afro-brasileiras, um acervo impressionante, uma coleção de mais de 1.400 registros. E no caso no doutorado eu voltei no acervo e foi um conjunto de 2,670 fotografias, quase sete mil PDFs, porque cataloguei 104 anos de reportagens das festas populares e tem muita a ver com a religiosidade, a cultura afro-brasileira, né, então, eu aí saí, mas já estava sentindo falta. Já estava mexendo com muita coisa no ambiente digital e fui professora substituta lá na minha escola, a FACOM, dois semestres na UFBA, e estava trabalhando exatamente com jornalismo digital. Dando oficina de jornalismo digital lá. Minha ideia era que a gente precisava fazer alguma coisa que unisse essa discussão sobre essa identidade baiana. Porque da forma que muitas vezes isso chega, essa tal de baianidade, que alguns teóricos dizem que não é bem assim, mas é um conceito que está aí, há pelo menos 25, 30 anos, há muita controvérsia em relação a ele. O que é ser baiano? XXX Então tem toda essa discussão. Só que às vezes esses signos dessa Baianidade, eles são muito centrados no litoral, no caso Salvador, e do Recôncavo. E quando falo Recôncavo nem estou falando de todas as cidades do Recôncavo. Mas principalmente a Cachoeira e Santo Amaro. E eu navego por esses três universos por uma questão de biografia. Eu nasci em Cachoeira. Porque, a cidade onde eu cresci é no Sertão, mas por conta do processo de colonização e de interiorização dessa colonização pelos sertões, Cachoeira estava na outra ponta. Cachoeira foi o segundo maior porto da Bahia. E o primeiro ramal ferroviário, para ligar Cachoeira a Chapada Diamantina passou por João Amaro, que é um distrito de Iaçu, e acabou influenciando na formação de Iaçu, a cidade onde eu cresci, ali pelo século XIX. Olha que interessante, o Sertão, o semiárido, que hoje chama de semiárido, esse Sertão tem recebido tantos nomes. E agora quando a gente olha pra isso, se a gente for pensar bem, quando a gente conhece movimentos como Canudos, né, todo aquele processo de Canudos. Aí a gente vai perceber que entre Canudos e Búzios, que é uma revolta um pouco diferente das outras, porque Búzios, por exemplo, ela teve, a gente tem, ela é muito bem documentada entre as grandes revoltas contra a escravidão que tiveram aqui, que aconteceu no Brasil afora. Mas Búzios tem um componente de que ela foi uma das primeiras, ela estava muito vinculada às ideias da Revolução Francesa, a liberdade, fraternidade, igualdade, mas com um componente da abolição. 

J Cleidiana nos faz refletir sobre as ligações entre os povos indígenas e os afrodescendentes no interior da Bahia como uma identidade histórica fundamental para a construção do Brasil, e que não foi articulada como parte do que é mais conhecido como a tal de Baianidade – sendo que a Bahia foi fundamental para a fundação e o desenvolvimento do país que conhecemos hoje como o Brasil. Com sua Revista Flor de Dendê junta com outras colegas e jornalistas convidados, elas fazem a releitura desses povos e histórias, perguntando—


 " E não tem como a gente não acabar se tornando ativista porque se você leva muito a sério, e também aqui no Brasil isso é muito necessário, o que a gente chama de responsabilidade social do jornalismo."


Cleidiana Ramos

C Quem são os sertanejos? Quem é esse povo sertanejo, esse povo semiárido? Ele talvez não tenha essa identidade negra, política, muito mais definida como é aqui no litoral, como na capital e no Recôncavo. Mas são povos que resistiram misturados. Descendentes de africanos, os africanos também foram empurrados para o interior baiano. E também de indígenas. Indígenas que foram forçosamente aculturados e negados, né. A cultura indígena do interior da Bahia é como se ela não existisse, eles nunca existiram, eles acabaram. Quando a gente vai ver vários movimentos, assentamentos, aldeamentos que ainda resistem, batalhas que eles trabalham ainda no século XX, tudo misturado como se fosse uma coisa só com o movimento dos sem terra. E tem coisas muito interessantes por esse sertão afora, os municípios que têm nomes indígenas. Meu município, por exemplo, se chama Iaçu, que em Tupi significa “água grande.” O Paraguaçu, que é um rio de integração baiana, ele banha três ecossistemas diferentes: o Cerrado na alta Chapada, a Cantiga (no médio Paraguaçu, que é onde Iaçu está), que é caracterizado pelas estiagens, então, fome, pobreza é uma marca desses locais. Aí chega à Mata Atlântica, que é a região do Recôncavo; ele deságua em salinas no Paraguaçu, em um lugar chamado Barra do Paraguaçu e nasce em Barra da Estiva na alta Chapada, já perto da Vitória da Conquista do sudoeste. Então pra você ver como a gente está todo conectado. Chapada é o ponto de ligação com Minas Gerais, por exemplo, por outro estado. Precisa mostrar essas conexões e é isso que a gente tenta fazer na Flor de Dendê. O termo “Afro-Sertanejo” é uma provocação. Uma provocação nesse sentido, como essas duas identidades elas estão mais ou menos relacionadas, não tão separadas como todo mundo pensa. Então é um projeto bem experimental, não tá monetizado, né... E é mais experimentação mesmo. 

J Ah, mas a revista é muito linda, eu acho assim que tem conteúdo e informação que você não encontra em nenhum outro lugar. E eu entendo por que, porque você também tem a abordagem que é bem destacada mesmo. Ok, Cleidiana eu quero saber o que significa para você ser uma liderança cultural no contexto da política de cultura da Bahia e do Brasil, e com isso eu quero destacar a importância do contexto do Candomblé, e eu quero saber um pouco mais de sua experiência com Terreiro do Cobre e como isso influencia seus trabalhos, suas políticas e o movimento negro no Brasil hoje em dia. 

C Menina, para falar a verdade, eu não me vejo como liderança cultural. Te explico por quê. A gente aqui no Brasil, né, e talvez, até depois queria que você comentasse também, eu acho que é um pouco diferente de algumas experiências que vocês têm. Normalmente as iniciativas, eu imagino aí, elas são tomadas a partir de um movimento mais coletivo. Aqui por conta da própria história das experiências pessoais, não têm como muitas vezes a gente separar isso, não, da parte individual. Então quando você vai ver, você está puxando o movimento sem você ter necessariamente planejado, né, então muitas vezes a gente acaba funcionando, no meu caso, por exemplo, eu funciono, eu tenho funcionado bem mais como pessoa que dá suporte do ponto de vista de colocar esses movimentos principalmente os movimentos religiosos, afro-religiosos. Dar visibilidade ao que está sendo feito, que é uma coisa que tem me aborrecido muito do ponto de vista das coberturas, por exemplo, das mídias comerciais nacionais. Todas as vezes que acontece algo aqui que nos impacta, está muito difícil, né, porque todo dia tem uma coisa nova, né. A gente ainda não se recuperou de um homem negro ser atingido por 80 tiros disparados por dois militares do Exército, né, vocês imaginam o que é o Exército na rua policiando ruas do Rio de Janeiro e um músico indo passar o final da semana com a família e ser confundido com um assaltante de carro e um carro que tinha um homem negro, sua esposa e filhos—eles sendo abatidos por 80 tiros. E aí é o caso de um homem negro também no Rio de Janeiro que desapareceu depois de uma mulher negra que na abordagem policial foi arrastrada por quilômetros por uma viatura policial que é o caso de Cláudia Silva. E aí vem a morte de Ágatha, uma menina de 8 anos, depois de um menino adolescente de 14. E aí a gente vai vendo. Depois dessa morte absurda desse homem que tem poucas semanas foi na véspera da Consciência Negra, o dia 19, João Alberto que foi morto no Carrefour (uma rede nacional de supermercados), né, e morto de uma forma brutal, espancado até a morte, sufocado como George Floyd foi aí, né, mas antes disso espancado, espancado de uma forma brutal, e a gente tem vídeos mostrando isso. E aí a gente nem está se recuperando. Ontem é uma menina, Rebeca de 7 anos, e a outra, Emily de 4 anos —duas primas que foram mortas no tiroteio e as balas partiram até o que tudo indica, com base em informações, de armas da polícia. Então neste país que a gente não respira, que a gente não tem paz, você não consegue ficar, digamos, assim completamente aleatória a isso. É preciso uma pessoa—uma mulher negra ou um homem negro—que tenha algum tipo de projeção de que pode dar vozes a esse tipo de violências todas que a gente sofre. É preciso estar muito anestesiado e distanciado e em um estado de negacionismo para que você não faça alguma coisa, que você não consiga. Então é nesse sentido que a gente acaba atuando muito como indivíduos. Muitas vezes nem em bloco, mas como indivíduos. No caso do Candomblé, por exemplo... Sim, o que me aborrece quando essas coberturas chegam, né, e vocês podem imaginar a surpresa nossa que por exemplo a maior empresa de comunicações no país as organizações Globo. Ela em 2021 ela começou a dar digamos assim as ligações, as conexões entre violência policial e racismo por conta dos episódios aí dos Estados Unidos, da morte de George Floyd. E o que as organizações do Grupo Globo fizeram? Elas têm uma empresa de TV a cabo, a Globo News, e aí eles passaram um dia inteiro porque essa TV é a cabo, elas têm debates, têm programas ao vivo discutindo a questão do racismo com profissionais do jornalismo todos brancos. Aí teve um barulho no Twitter e aí no dia seguinte o Globo News foi lá e em forma no editorial pediu desculpas e colocou um programa especial apresentado por Heraldo Pereira que é um jornalista negro do Grupo Globo e mais 5 jornalistas negras. 5 mulheres negras, né. Inclusive Maju Coutinho que é a única apresentadora de telejornal diário da emissora negra, que é o Jornal Hoje, um jornal que passa ao meio dia por volta das treze a catorze e trinta. Aí a Globo foi lá e colocou aquilo. O sucesso foi tanto que eles repetiram isso no Globo Repórter, que é um programa da TV aberta, no dia seguinte. Mas o que a gente, o que fiquei, o que me assusta é como é que esta empresa de comunicação, ela só se mobilizou dessa forma, muito pressionada pelo Twitter. Porque a gente está vivendo esse momento de muitas vozes, muitas ativistas, negras e negros no Twitter. Então é assim mesmo, mas uma vez, essa coisa do protagonismo de uma pessoa, mas que na verdade traz pautas que são muito antigas. E o que me irrita. Eles apresentam esse movimento, digo as mídias comerciais, como isso fosse uma coisa nova. E sempre com o discurso, é porque no Brasil não acontece como acontece nos Estados Unidos, os protestos ganharam uma dimensão muito maior. Ah porque no Brasil, o movimento negro, o movimento negro, sempre no singular. O movimento negro é pacifista, o movimento negro brasileiro ele não faz nenhum tipo… aí quando você vai ver a história desse país desde Palmares, sabe, desde Búzios, desde os Malês, a Revolta dos Malês ocorrida em 1845 é o maior, é considerada uma das maiores das Américas. Um levante muito importante e que, por exemplo, assustou a América Espanhola mais que a Independência do Haiti, né. Então assim quando a gente vai ver, e hoje, a gente vai ver os movimentos de mulheres negras, elas não são recentes, eles não são, não foram sufragistas como de vocês, né, eles não foram como sufragistas e por propriedade como da Inglaterra, foi tudo isso, mas foi muito mais. Quando a gente vai ver, tem um movimento emancipatório das mulheres negras desde o período colonial. Tereza de Benguela comandou um levante de quilombolas no século XIX junto com indígenas e quilombolas. Quando você vai ver a história de figuras como a própria Maria Quitéria, uma sertaneja que combateu na guerra da Independência da Bahia vestida de homem, um transgênero praticamente, né, porque as mulheres não podiam se alistar para a guerra. Quando a gente vai ver a história de Maria Quitéria, o que Maria Quitéria sofreu, né, uma tentativa de feminilização de Maria Quitéria porque aquela história daquela mulher era uma ameaça ao poder patriarcal. Quando a gente vai ver a Irmandade da Boa Morte, formada pelas chamadas negras do partido alto. Ou seja, mulheres negras que no meio daquela violência brutal da escravidão, via essa figura da escrava de ganho, né, as ganhadeiras, essas mulheres tiveram de ascender ao ponto de serem chamadas das negras do partido alto. Então por isso, no último dia da festa, elas financiam a festa, até hoje assim. É a irmandade que financia a festa. Claro, o poder público hoje dá um suporte porque a festa é transnacional, né, inclusive muitos afros-americanos vem pra assistir a festa da Boa Morte em agosto, né. Mas elas que financiam com a comida ali, todos os dias de festa, e elas fazem questão de que no dia 15, que é o grande dia da festa, o dia de Nossa Senhora da Glória, elas fazem o que? Elas vão para a rua, as roupas são extremamente finas, cheias de jóias. Porque era o recado, nós ascendemos. Então como é que você vai dizer que neste país tem um movimento negro no singular. Nós temos movimentos negros. Nós temos estratégias diferentes e em vários segmentos. É a Capoeira, são os movimentos artísticos, o Carnaval. O Carnaval sempre foi um espaço de luta. E não nasceu com o Ilê, nem com o Gandhi, que é de 1946, mas nasceu com a Embaixada Africana lá no século XIX. Nós, a população negra sempre enfrentando o poder repressor que dizia, “Não pode! Os batuques estão proibidos.” Eles fazem de outra forma. O próprio Ilê Aiyê quando saiu em 1975, em plena ditadura militar, o racismo instalado lá na lei de segurança nacional, não se podia falar de racismo senão ia para a cadeia e o Ilê Aiyê foi para rua com a estética, o discurso estético, negro é lindo. Os jornais sentiram. A Tarde fez uma nota os acusando de comunistas, chamando-os de agentes de Moscou. 


Olodum band on the launch of the 20th of November (Black Consciousness Day) issue of the A Tarde newspaper in Salvador. 

Quem são os sertanejos? ... são povos que resistiram misturados. Descendentes de africanos, os africanos também foram empurrados para o interior baiano. E também de indígenas. Indígenas que foram forçosamente aculturados e negados, né.."

Cleidiana Ramos

J Essa colocação da Cleidiana me impactou bastante, porque hoje em dia o Ilê Aiyê conhecido e celebrado mundialmente como um centro de cultura e política da beleza negra e o poder negro na diáspora, como um bloco fundamental para o carnaval baiano, que é a maior festa de rua do planeta. A fala de Cleidiana nos lembra como foram duras e contestadas essas lutas políticas pela representação, pelo reconhecimento do racismo e como a luta pela liberdade ainda continua com duras frentes de oposição, não só dos governantes, mas também da mídia.

C Então quando a gente vai perceber tudo isso, não dá para você estar em nenhum desses movimentos, sem fazer ativismo. E aí para fechar porque já estou me prolongando, tem um exemplo prático do que estou tentando dizer. Em 2004, lá no Engenho Velho da Federação, que, lá no Terreiro do Cobre, onde eu me tornei iâo, chegou algumas igrejas neopentecostais, inclusive a maior delas, a IURD (Igreja Universal do Reino de Deus), e então começaram vários ataques porque o Engenho Velho é um bairro pequeno e que concentra mais que trinta terreiros, de todas as nações, né, tem toda uma história, a Casa Branca, está ali localizado, depois o Gantois, né, que são casas bem antigas. E lá no Engenho Velho virou essa espécie até ser chamado um quilombo urbano, a população negra é a maioria lá, né, majoritariamente negra a população desse bairro que está ali bem no centro da cidade. E aí começaram a ter vários ataques de intolerância. Exatamente por esse grupo neopentecostal, a IURD. Era aquela coisa de panfleto, de proferir ofensas por meio de sistema de som e tal. E aí a ialorixá Mãe Valzinha Bianchi, que é a iyalorixá do Terreiro do Cobre, minha mãe de santo. Ela achou aquilo tão, tão terrível até porque eles estavam virando (o sistema de som) até em direção ao Cobre também. E o que ela fez? Ela saiu e começou a conversar com as lideranças de outras casas ali do Engenho Velho e disse, a gente tem que fazer alguma coisa. Eles se reuniram e dessa reunião elas tiraram uma marcha, no dia 15 de novembro. Porque já tinha atividades no dia 20. Imagine, essa marcha cresceu que ela ultrapassou os limites do Engenho Velho da Federação. E se tornou uma caminhada do povo de santo do Engenho Velho da Federação, que eles mantêm o nome. E ela acontece por lá, né. Mas com participação dos terreiros inclusive de outras cidades. Essa marcha já tem 15 anos. Ela tem quinze anos. Esse ano não deu para fazer por conta das restrições, né, por conta da pandemia, não deu pra fazer. Mas é algo que já entrou no calendário do Novembro Negro. E claro, deu uma visibilidade enorme. Então é isso que estou tentando dizer. São muitas frentes de batalha. E que isso muitas vezes para quem não está familiarizada e não está familiarizado porque não quer, porque não consigo entender jornalistas que não procuram se informar, sobre coisas que eles têm que saber... Eu não consigo entender, porque não sabe se não quiser. Não quer. Então eu não consigo entender essa, às vezes até uma certa forma de não dar dimensão ao tamanho disso. E de insistir nesse tipo de discurso que vem desde a década de 1930, que o Brasil é uma democracia racial. E que quando se tem qualquer tipo de revolta, contra qualquer área dessa, é porque a gente está imitando os Estados Unidos. Então, isso é terrível. Eu fico indignada que eles ainda usam esse tipo de discurso por aqui, né, diante dessa riqueza. E olha que estou falando com muita propriedade apenas sobre um lugar que eu conheço razoavelmente bem, que é a Bahia.

J Pois é, porque o país é enorme e muito diversificado. E nossa! Você agora nos deu uma aula enorme assim dos movimentos negros, da importância também principalmente das mulheres negras em muitos âmbitos né, que não é só cultura. Não tem essa distinção assim de que um ato é de cultura e outro ato é de política, mas que a própria vivência é política, é isso né? 

C Sim. Não tem nada mais político no sentido amplo da palavra do que o Candomblé, né. Quando você vai ver e isso também é essa coisa muito reducionista. O Candomblé é uma religião de negros, uma religião que durante muito tempo ficou ali e a oralidade, e aí parece que essa coisa de ser oral, que você não criou um sofisticado modelo de pensamento, que você não criou um sofisticado sistema de governo e aí quando você vai ver Mãe Aninha, a fundadora de Ilê Axé Opó Afonjá. 1910 ela fundou o Ilê Axé Opó Afonjá. Mãe Aninha é uma figura que saiu da Casa Branca. Você conhece bem a história por conta da Cidade das Mulheres. Ela é uma figura que aparece na Cidade das Mulheres, até ser apresentada como a última das grandes né a briga ali de Martiniano do Bonfim com as outras casas. Então ficou muito aborrecido, né, mas quando você vai ver Mãe Aninha é uma figura extremamente política. Ela, por exemplo... A gente nunca achou esse decreto, mas isso está na oralidade e talvez não tenha se transformado exatamente no documento, né, por exemplo Mãe Aninha ela tinha muitas relações no Rio de Janeiro. Uma das relações dela era com Oswaldo Aranha. Oswaldo Aranha foi ministro de Getúlio Vargas. E Getúlio, primeiro o governo de Getúlio, era ditadura, Getúlio assumiu o governo brasileiro depois da chamada “Revolução de 1930” que era considerada a entrada do Brasil na modernidade por conta da industrialização e do surgimento de algumas camadas, mas não tem revolução nenhuma. Os mesmos grupos econômicos que continuam mandando. E depois de tudo deu um golpe dentro do sistema chamado “Estado Novo” quando ele realmente instalou uma ditadura, uma ditadura mesmo. Com a suspensão da Constituição, as liberdades individuais, Jorge Amado foi preso, né, tem toda uma história do partido comunista, proibições do partido comunista. Edison Carneiro que era essa figura que estava ali muito próximo era do partido comunista se escondeu no Afonjá, né, Mãe Aninha deu cobertura. É o que o professor Ubiratan Castro de Araújo chamava de materialismo histórico. Então esses comunistas como Jorge Amado, Edison Carneiro, que são ateus, mas que estavam ali, eram ogãs do Candomblé, protegidos pelo Candomblé. E ao mesmo tempo, essa mulher estava articulando, articulou um pedido para que pudesse bater o atabaque. Porque isso era contravenção segundo a legislação brasileira. Mestre Bimba na outra ponta também foi lá falar com Getúlio, e pediu, foi quando veio a liberação da Capoeira e o surgimento da Capoeira Regional. Porque a capoeira era contravenção, estava proibida por lei; Mestre Bimba colocou os movimentos do Taekwondo, Karate, para poder abrir as academias, é assim que surge a Capoeira Regional em oposição a Capoeira Angola de Mestre Pastinha, né. Mas Bimba fez isso exatamente para fazer, poder abrir as academias. E Getúlio, ele entende esse Brasil. Eu sempre digo, Getúlio Vargas, é até hoje pra mim, é o único governante brasileiro que entendeu uma coisa sobre o Brasil, que o Brasil sempre foi uma casa dividida. Nós somos uma república federativa no nome, é oficialmente. Mas sempre fomos isso, divididos. Isso não é de agora, essa polarização não é de agora. E Getúlio, como ele tem um projeto de poder e ele lê isso muito bem, e ele tem que fazer o que? Ele diz que tem que criar uma unidade, uma ideia, do que seria ser brasileiro. Aí ele espertamente, ele escolhe exatamente os símbolos de cultura afro-brasileira: a Capoeira, o Candomblé, a feijoada. Aí tem todo um movimento dessas Mães de Santos. Elas vão para eventos fora da Bahia. Fazem comida. Elas têm todo esse interesse, surgem os órgãos de patrimônio, como a Secretaria de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, é quando o Brasil começa a criar uma política de patrimônio. E aí o que que elas fazem? Elas vão para esses eventos para fazer comida. Tem uma foto delas servindo Getúlio, as baianas. E aí, elas vão fazer articulação. É, quando você vai ver Aninha, vou ficar aqui também em Aninha. Ela criou o Conselho dos Obás. Os 6. Depois, Mãe Senhora ampliou para 12. O Conselho de Obá (espécies de consultores e defensores especialmente na sociedade civil) dos (interesses) do Afonjá. Essas mulheres fazem o quê? Elas colocam homens que têm projeção na Bahia. E isso é para que? Para que elas não precisem estar lidando com a polícia que está invadindo os terreiros, né. O Candomblé deixou de ser caso da polícia, só para as pessoas aí terem uma ideia, de como é isso e o poder dessas mulheres, de articulação política dessas mulheres, de estarem dialogando com todos esses segmentos, inclusive os segmentos de poder. O Candomblé deixou de ser caso da polícia em 1976, tem 44 anos. Um decreto do governador Roberto Santos, que assinou esse decreto dizendo que não era mais preciso ir a uma delegacia, pra tirar uma autorização para fazer um culto. E isso...o Candomblé já estava lá desde os anos 40, 50 e 60 e a partir dos anos 1970 como algo que fazia parte da ideia de ser Bahia. O estado baiano fazendo sua política de turismo chamando o povo para ver o Candomblé, vendendo essa ideia de um lugar moderno, mas que ao mesmo tempo vive com essa coisa antiga, mística, mágica do Candomblé, né. Então quando você vai ver isso 1976, essas mulheres, em tese, uma liderança do Candomblé teria que ir a uma delegacia que se chamava Delegacia de Jogos e Costumes, ela legislava sobre prostituição, jogo do bicho e o Candomblé estava lá. Então essas mulheres faziam isso. Seus ogãs são pessoas que têm reconhecimento fora, jornalistas, gente da universidade, né, então elas faziam esse tipo de política. Como você vai dizer que é um povo que não aprendeu a fazer aliança, articulações muito bem, né, política muito bem? Eu lembro de Lola, uma integrante da família Bamboxê Obitikô, né, que é uma das famílias do Candomblé bem tradicionais daqui, do Pilão de Prata, hoje liderado por Pai Air José. E ela é da Inglaterra, o ramo da família Obitikô tem na Inglaterra, na Nigéria e aqui, né, Lisa Castillo, sua compatriota tem pesquisado muito sobre... ela foi responsável por trazê-la, e eu lembro o discurso dela, uma homenagem ao Pai Air, né de setenta anos do Pilão de Prata, e que ela disse isso no discurso, “O Candomblé baiano conseguiu fazer o que o pan-africanismo não conseguiu; é uma grande aliança entre várias nações africanas. Várias civilizações africanas.” E está tudo isso muito bem articulado. Então você precisa de um poder de articulação e de estratégias que seja fascinante. Para mim não tem nada de uma melhor escola de articulação política do que o terreiro. E olha que não é um governo republicano, é um governo monárquico.

Cleidiana Ramos and Isabelle Sanches at the march against Religious Intolerance in the Engenho Velho neighborhood of Salvador, Brazil. 

J Cleidiana cita a hierarquia do Candomblé, sendo ela uma iâo—uma filha de santo, e destaca a importância das mães de santos, as sacerdotisas supremas das famílias de santo e o povo de terreiro, para enfatizar o papel delas como lideranças não apenas culturais ou religiosas, mas também políticas nas articulações entre comunidades negras e o estado, e também como produtoras de conhecimento em diálogo com artistas e acadêmicas ao longo dos séculos.

C O processo iniciático é muito difícil. E não adianta. Você pode ter suas leituras todas científicas, nada porque por mais que várias coisas a gente já conheça, isso ainda tem um espaço de viver experiência, é outro. Não adianta suas leituras, não adianta sua teoria. Porque a experiência é outra coisa. É uma experiência onde você está condicionado ao segredo, também, né. Então isso é fantástico, né. Então é um processo de formação humana inacreditável aí vou te dizer, é um tipo de pensamento tão sofisticado, tão sofisticado, que ultrapassa essa ideia do que a oralidade não tem, como a gente pode dizer, que a oralidade é algo banal. Não é né. Eu admiro muito essas mulheres que escrevem, né. Por exemplo, Mãe Aninha escreveu um texto para o segundo Congresso Afro-Brasileiro. Né, sobre comida. Mãe Stella também do Afonjá, Mãe Stella é escritora que foi a primeira a assumir uma vaga na Academia de Letras da Bahia. Minha iyalorixá Mãe Valnizia de Ayrá tem três livros publicados. Eu estava dizendo pra ela outro dia, isso é fantástico porque elas dominam dois códigos. Elas dominam o código delas, da vida delas do mundo delas, e dominam o código que é de fora porque assim, elas, por exemplo, não contam segredos do Candomblé. Elas não falam do Candomblé. O que elas contam nesses textos, nesses livros, são experiências de vida que elas têm, claro, a partir do mundo delas, mas também a partir da leitura que elas conseguem fazer aqui fora. Isso pra mim é fantástico. Né, é coisas que eu não consigo fazer, por exemplo. Até por conta da hierarquia e tudo isso. Mas eu considero os terreiros um potencial político inacreditável. 

J Eu também, eu também. É assim que motivou minha pesquisa, minha vivência na Bahia, nossa conexão, tudo isso. Eu tenho a certeza de que eu aprendi mais nos terreiros do que a sala de aula e nem sou iniciada, mas só as discussões públicas, né, os debates, a maneira de viver, a cosmologia, a ética, o respeito, a disciplina, tudo isso é uma fonte de sabedoria e conhecimento que realmente é patrimônio da humanidade. É global como você diz: o pan-africanismo, da diáspora também, então é super importante levantar esse contexto. E você também tocou no assunto da ditadura, né, do sistema político do Brasil, essa história. E estamos em um momento histórico da humanidade. Todo ano é, mas hoje mesmo, esse ano, a pandemia, as eleições federais nos Estados Unidos e as eleições municipais no Brasil também estão transformando o mundo... 

Eu agradeço muito a participação de Cleidiana na primeira parte de nosso episódio “Cultura é uma força política.” Essa discussão foi muito rica para contextualizar as lutas dos variados setores negros que participaram na construção do Brasil, e para entender melhor as complexidades das identidades brasileiras. A segunda parte trata mais das políticas atuais, dialogamos sobre as eleições recentes nos EUA e no Brasil, e fazemos leituras comparativas sobre o movimento Vidas Negras Importam. Aguarde a segunda parte desse episódio que lançará no próximo mês.

Esse episódio foi gravado por Jamie Lee Andreson na Pennsylvania, EUA em diálogo com Cleidiana Ramos em Salvador, Brasil. A edição do áudio foi realizada por mim. Agradeço o apoio de nossa equipe do Brasil Culture Connections, as estagiárias da Pennsylvania State University, Amanda Talbot e Madeleine Tenny. A música se chama “Batente de pau de Casarão” por Túlio Borges, com uso livre.

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