S.2 Ep. 3 A Portela: pedagogia e potência no seu território-berço

TRANSCRICÃO EM PORTUGUES

Créditos de imagem: Guy Veloso

Jamie Lee Andreson, PhD Bem-vindes ao podcast bilíngue Conexões Culturais Brasil. Esse é nosso terceiro episódio da segunda temporada, Arte e Cultura nas Periferias. Recebemos Rogério Rodrigues Santos com o tema, “Escola de Samba Portela: pedagogia e potência no seu território-berço”. Rogério Rodrigues Santos: Professor de Língua Portuguesa e Literaturas da Rede Pública Estadual do Rio de Janeiro; Bacharel e Licenciado em Letras Vernáculas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde também fez Especialização em Literatura Brasileira; Mestre em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas pela FEBF–Universidade do Estado do Rio de Janeiro; cofundador do site: www.portelaweb.org. Atua no Departamento Cultural da Portela desde 2013, tornando-se diretor a partir de 2016.


Então Rogério, é um prazer receber você em nosso podcast Conexões Culturais Brasil para falar sobre a Escola de Samba da Portela e a comunidade local e sua trajetória também nesse cenário cultural do Rio ao longo de sua vida toda. É um grande prazer. Obrigada pela participação. 


Bom dia, Jamie. É um prazer enorme estar aqui. Estou muito feliz pelo convite, extremamente honrado. E fico feliz também por poder dar notícias e falar um pouco da minha atuação como militante cultural, como suburbano, como periférico, como homem preto, e falar também do trabalho do coletivo, né, mas somos um coletivo, no Departamento Cultural da Portela, que acaba dialogando com as diversas experiências individuais, as diversas subjetividades dos companheiros e companheiras do Departamento Cultural da Portela. Então, estou aqui para relatar também um pouco da minha trajetória profissional e pessoal.


J Queremos aprender com suas experiências. Esse episódio faz parte de nossa segunda temporada, Arte e cultura nas periferias, e eu vou anotar que é o primeiro episódio que trata de um assunto além da Bahia.


R Ô! Que ótimo!


J Eu sempre trabalhei na Bahia, morei na Bahia. Eu tenho minhas pesquisas e trabalhos entre a cultura baiana, e eu quero muito ampliar o contexto brasileiro para nossos ouvintes. Então, por favor, pra começar, pode se apresentar? Como começou sua jornada com a escola de samba Portela?


R Bem, então podemos dizer que é uma extensão do seu trabalho, né, dentro da Bahia, porque eu sou filho de baianos. Meu pai era de Salvador e minha mãe era de Lençóis e criada em Barreiras. Então, sou resultado desse cruzamento entre a Bahia negra, né, e a Bahia sertaneja. Então, estou aqui no Rio de Janeiro, representando esse entrecruzar cultural. Bem, em primeiro lugar, sou professor, né, como já foi falado na sua apresentação. E como professor, como suburbano, morador de Oswaldo Cruz, que eu fui na infância e nos bairros vizinhos da Grande Madureira, fui impactado desde criança no imaginário, pelo fato de ser vizinho de uma escola de samba chamada Portela. Então eu via meus vizinhos saindo de tarde. Imagina, a Portela desfilava de madrugada, às vezes de manhã, mas os vizinhos já saíam fantasiados desde a tarde. Então eu via aqueles personagens que iriam contar uma história na avenida durante o cortejo, e eu ficava naquela mentalidade de criança, né. Você mergulha nesse mundo do fantástico, do maravilhoso, observando pessoas nas vizinhas que no dia a dia são pessoas extremamente simples. Elas lá estavam representando personagens, eram índios, eram nobres, eram vultos da história nacional do Brasil, enfim. Então, era muito interessante. Todo mundo muito bem vestido com chapéus, luvas, casacas, vestidos [de saias] rodadas, botas. Tudo era muito curioso ver como criança, olhar da criança. A gente percebia como essa…o carnaval transforma as pessoas, subverte os papéis. E a partir daí, não frequentava a quadra– o espaço da sede social da Portela. Meu pai era militar, minha mãe dona de casa, mas ficou nas minhas memórias e sempre acompanhando os desfiles pela TV. Vi a Portela desfilar depois do desfile oficial em Oswaldo Cruz. Eu e minha mãe íamos acompanhando a escola depois de desfilar em Oswaldo Cruz para desfilar em Madureira andando. E a gente via as escolas, os blocos dos bairros da região, depois o Império Serrano e depois a Portela, que fechava a terça-feira gorda, chamava “terça-feira gorda”, de terça-feira de carnaval. Então era a minha, foi minha primeira experiência vendo escolas de samba de modo geral e especialmente a Portela. Depois disso, acompanhando os desfiles durante esse período todo, entrei na faculdade, na universidade, já estava além depois da adolescência. E aí, no meu primeiro trabalho remunerado como estagiário, eu fui à quadra da Portela com uma amiga tijucana, salgueirense. A gente foi comprar uma fantasia, então fiz a minha estreia em 1987, na Portela. Então, desde lá, de lá pra cá, nunca mais parei. Já tem um bom tempo aí, né?



J Sim, que lindo! Eu queria perguntar assim em qual década foi que você via essas fantasias e essas pessoas quando era criança? Desculpe o divulgar!


R A minha idade, eu vou fazer 58 anos agora, dia 3 de junho, então isso foi na década de 70, década de 1970, a Portela foi campeã em 1970, tinha cinco anos, iria fazer seis anos. Então, desse período. Para depois, eu comecei a acompanhar a escola meio que à distância e depois me aproximando até que entrei.


J Imagino que tenha muitas mudanças ao longo desse tempo na cidade também no carnaval, né?


R Nossa, mudou muito, mudou muito, até porque as escolas eram…elas tinham uma dimensão menor, não uma dimensão em termos de contingente, né, porque a Portela na época, se ela, certamente ela desfilava com 2800 pessoas no início dos anos 70, ela hoje desfila com o mesmo quadro de gente, praticamente porque os regulamentos vão mudando. Então as escolas vão se adequando. E até que entre ‘70 e 2022–hoje–, né, houve um período que nós, os sambistas, os estudiosos, os pesquisadores, chamam de…”o período áureo” das escolas de samba, que foram os anos 80. Nos anos 80, as escolas explodiram em tamanho e em contingente, quer dizer, por que é que eu digo tamanho? Tamanho é o visual. O que é transmitido pela TV, o que é visto na avenida até porque elas foram se adaptando aos regulamentos, que mudam a cada ano, mas também as dimensões das avenidas, porque antes o carnaval era mais horizontal, depois ele se tornou vertical. Então as escolas foram se adaptando a essa nova exigência, esse novo contexto. E a linguagem visual artística também mudou. Então, para atender o crescimento do público nas arquibancadas, que foram se verticalizando, as escolas também se verticalizaram com alegorias maiores, mais altas, fantasias mais altas, né, a incorporação dos esplendores dos costeiros, etc. Então eu acompanhei essa transformação, porque de criança, aí você vai tendo uma consciência do que significa essa manifestação cultural e isso como espectador, né, e depois como um militante, né, um voluntário, uma pessoa, um torcedor que criou junto com outras outras pessoas. O site PortelaWeb, que foi a fundação, começou no final dos anos 90, 98, 99, e a fundação foi em 25 de novembro de 2000. Então, a gente, graças a internet, a gente começou a criar uma rede de amizades de amigos e amigas do Brasil, do Rio de Janeiro, de outros estados do Brasil e até de fora do país. Então as escolas de samba também foram se adaptando. Nós que fomos os, digamos, inovadores da internet na Portela—porque houve também grupos no Salgueiro, na Mangueira—mas nós que fomos os pioneiros dentro dessa incorporação tecnológica na Portela, passamos a utilizar essa ferramenta para compreender a história, a memória e depois ter uma atuação política que depois podemos conversar mais adiante.


J Isso, vamos conversar sobre esse projeto, que também é arquivos, né, é manter a memória da escola. E para mim, esse assunto é muito interessante como historiadora, porque eu acho que diz tanto sobre a história nacional, como você falou, o contexto político também da década de 80, de muitas transformações no Brasil e também das da cidade do Rio de Janeiro. Então, vamos primeiro concentrar na cidade, porque eu quero entender e levar esse contexto também para pessoas que não conhecem as escolas de samba dentro de seus contextos, porque a ideia desse podcast é entender de onde vem a cultura brasileira. Quem são os produtores dessa cultura? Em quais contextos, né, e condições que sabemos, é muito difícil lutar e produzir e ter apoio de ter cultura além do momento do desfile, porque sabemos que existe toda uma comunidade e trabalho diário para isso acontecer. Então, queria entender um pouco mais como é trabalhar dentro da Portela, do bairro da Madureira também, e como isso faz parte de um contexto periférico do Brasil também.


É um assunto bastante amplo. Teremos que fazer muitos recortes para compreender o que é, qual é a representatividade de Oswaldo Cruz dentro de uma macrorregião chamada Grande Madureira...Mas você quer que eu comece por onde?


J O contexto local.


R Contexto local de Oswaldo Cruz, Madureira etc.


J É, a interação com o bairro mesmo. O que significa Portela para a comunidade?


R A Portela é um grande ente catalisador de elo comunitário, porque dentro da quadra…quando as escolas de samba surgiram, elas identificavam uma localidade. Por exemplo, o nome “Portela” refere-se à Estrada do Portela, porque ela nasceu, ela foi fundada numa rua adjacente, mas ela foi…teve suas primeiras sedes na Estrada do Portela, e na Estrada do Portela moraram os seus fundadores. Então, tem essa importância desse eixo, que é uma avenida, é uma estrada que vai de Madureira até Oswaldo Cruz, de Oswaldo Cruz até a Madureira, na vizinhança com Rocha Miranda. Então essa região aí, que tem a Portela como principal instituição, a agremiação vai comemorar 100 anos ano que vem, 2023, e ela tem essa representatividade porque ela era o centro de sociabilidade, de socialização da região, que é Oswaldo Cruz—ao contrário de Madureira, que já era um subcentro, né, um entreposto comercial importante devido ao Mercadão de Madureira, às duas estações Magno e de Madureira, da via férrea. Então, tinha uma importância. Tinha o movimento, as ruas eram calçadas, tinham uma classe média local, ao contrário de Oswaldo Cruz, embora sejam bairros vizinhos, muito próximos, muito próximos mesmo. Mas Oswaldo Cruz tem uma característica de ter sido, durante décadas, uma localidade rural. Então, a estação de trem só foi inaugurada em 1898, mas acho que cinco anos depois de Madureira. Mas mesmo assim a parte mais urbanizada do bairro ficava restrita justamente em torno da estação onde a Portela foi fundada, que é uma via paralela à estrada de ferro, a via férrea. Era uma região que inclusive não tinha nem calçamento nas ruas. Há saneamento básico praticamente inexistente. Então, eram grandes, eram casas com terrenos imensos e tínhamos ali um bloco chamado Quem Fala de Nós Come Môsca. Foi fundado em fevereiro de 1921, liderado por uma mulher, uma grande festeira, uma grande liderança comunitária local, que era dona Esther Rodrigues e seu marido Euzébio Rosa. Ela era uma mulher branca. Ele era um homem negro e que foi o embrião da Portela, porque era um bloco carnavalesco que desfilava. Tinha autorização para desfilar. Inclusive tem isso, né, porque as agremiações de origem de matriz afro-brasileira, né, tinham controle… Viviam sob o controle do Estado. Então tinha que ter autorização para desfilar. Então, ela tinha essa autorização, até porque ela recebia pessoas, figuras influentes da República recém criada. As pessoas se deslocavam para Oswaldo Cruz, e ela fazia festas que duravam dias ali. Então a Dona Esther cedia a sua licença para um bloco que foi fundado por três rapazes negros, né: Paulo Benjamim de Oliveira, Antônio Rufino, Antônio Caetano, que são frutos da diáspora africana urbana no Rio de Janeiro, né. O Paulo veio da região do centro da cidade, mais especificamente aqui na Gamboa, aos pés do Morro do Livramento, mais conhecido como Morro da Providência, atualmente, e que no início foi chamado de favela. O Antônio Caetano veio da região do Vale do Paraíba do Sul, no Vale do Café, no interior do estado do Rio de Janeiro, e o Antônio Rufino veio da Zona da Mata Mineira, né, que muitas populações negras migraram desses dois territórios nesses dois ambientes aí, devido à decadência da cultura cafeeira nesses locais, tanto no Vale do Café, no Vale do Paraíba, no estado do Rio, quanto na zona mineira, Zona da Mata Mineira, que é próximo aqui ao norte do estado do Rio. Então, Oswaldo Cruz acabou recebendo, né, por diversas políticas, por diversos movimentos migratórios de co-origens múltiplas–causas múltiplas, sejam econômicas, políticas, históricas, enfim. Então, Oswaldo Cruz, o subúrbio de um modo geral, e o Oswaldo Cruz em específico, acabou recebendo essas populações. Então a Portela, ela foi fundada por filhos da diáspora negra, né. Ela tem essa simbologia e tem também essa função social, porque é em torno da agremiação carnavalesca, né, a Portela. Primeiro que fala de “Nós Como Môsca”, depois há a Portela, né, que mudou de nome várias vezes, embora aquele núcleo tenha sido conhecido como o pessoal da Portela, mas ela teve diversos nomes. Foram primeiro: Vianinha Oswaldo Cruz, segundo: Conjunto Carnavalesco Oswaldo Cruz. Aí depois “Quem Nós Faz é o Capricho”, porque o agrupamento venceu um concurso de sambas promovido por um pai-de-santo no Engenho de Dentro, que era o Zé Espinguela. Aí o pessoal ganhou. Aí Heitor dos Prazeres, um dos presidentes ali da comitiva da Portela, diante do orgulho de ter vencido esse primeiro concurso em 1929 rebatizou o Conjunto Oswaldo Cruz como “Quem nós faz é o capricho”. depois a escola mudou para Vai Como Pode até aqui se afixou a partir de 1935 como Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela. Então a Portela tem essa importância comunitária, porque as pessoas nascem, são batizadas, morrem, são veladas, fazem festas, tudo em torno da quadra da Portela. Sempre foi assim.



J Que linda essa história, é muito rica, com certeza. E vamos pular um pouco para o presente. E eu quero saber de sua experiência de vida e carreira com Portela, mas também sua vida pessoal. Como se define a periferia como um contexto social e geográfico urbano?


R Bem, é hoje eu tenho a certeza disso, mas era um sentimento que eu carregava dentro de mim. Em primeiro lugar, o lugar de pertencimento, né, a periferia é um lugar de pertencimento. E hoje em dia eu tenho mais do que nunca a consciência de que ela é muito potente. Ela é muito potente porque ela é pedagógica, ela é civilizatória, e ela não depende da centralidade das decisões—ela existe por si mesma. Então, a minha minha vivência de suburbano, né, que está aqui, começou pelo lúdico. Depois, se tornou como uma prática…uma prática de militância. E hoje é uma fonte de aprendizado acadêmico, né, de saberes. Então, eu passei por todas essas etapas como pessoa, como profissional e como pesquisador. Então, é tão difícil descolar uma face da outra porque o pesquisador tem que ter alguma isenção pelo menos. Mas é muito difícil, porque eu não posso negar a minha etnografia. Eu não posso negar a minha vivência, a minha, a minha construção como sujeito político, como sujeito histórico, como sujeito cultural. Não posso negar essa minha trajetória, né. Então, a importância da periferia para mim é imensa. Eu só tenho a agradecer por ser periférico. A única coisa que eu posso dizer é o quanto é importante para a minha existência, para a minha resistência e para a minha prática diária, porque a gente entende o que é, o que é solidariedade, o que que é empatia, o que é a amizade, o sentimento de pertencimento, o que que é coletividade. Então, essa…tudo compensaa de periferia, tudo o que eu sou como periférico é por estar ter vividoe estar pensando sobre elas— todas as periferias.


J Isso. Muito obrigada por compartilhar isso. Gostaria de comentar sobre a relação entre a periferia e o Brasil, mas em termos políticos ou não?


Devemos porque…porque, por exemplo, eu estava… Eu vejo os noticiários no Rio de Janeiro e em todas as todas as editorias nacionais de outros estados, mais especificamente no Rio de Janeiro. E acabei de antes de entrar aqui para conversar contigo, eu estava vendo que só sob o governo do atual governador foram 34 jovens negros mortos em supostos confrontos com a polícia militar. E por outro lado, uma mãe que no mínimo é cúmplice do assassinato do próprio filho, ela recebe o benefício da prisão domiciliar, que foi o caso do menino Henry Borel. A família branca, suburbana inclusive, mas branca, pertencia àuma elite política, e ela recebeu o benefício ontem à noite da prisão domiciliar. E, por outro lado, há a lenda do genocídio que é promovido para as populações pretas, periféricas e, sobretudo, pretas, e de homens pretos, né. A gente vê que é essa justiça que prende jovens negros que, através de reconhecimento por fotos e pessoas sem nenhum…sem o direito de se defender, acabam sendo presas, e ficam presas, ficam esquecidas. Aí, se não for o trabalho da imprensa para dar voz e no mínimo exigir que os casos sejam revistos até porque os juízes são brancos, são homens e brancos. Então, a gente pára para pensar assim, porque é o contexto político desse país, especialmente em tempos atuais, quando nós estamos num governo que quando foi eleito legitimamente, democraticamente, quer negar a democracia, quer negar os direitos, quer negar a liberdade, quer negar, quer negar a diversidade. Então é complicado. Então, é um governo que quando tomou posse e tudo de ruim que existia, que existe na sociedade brasileira até então, ou cujo povo era conhecido como cordial, as máscaras caíram porque o brasileiro não é cordial, o brasileiro é misógino. Ele é homofóbico. Ele é racista. Então, tem ódio de pobres. Então essa face, essas..essa pior face do Brasil começou a aparecer porque esse governo, quando foi eleito, ele deu uma espécie de licença para que essa gente pudesse fazer justiça com as suas próprias mãos, permanecessem dentro do seu dos seus privilégios brancos, de suas estruturas hierárquicas. Então, é defender seus patrimônios. São patrimonialistas desde 1500. Então, o contexto? As periferias estão abandonadas e mais do que abandonadas, elas são o alvo de uma política de extermínio.


J É fundamental levantar essas dinâmicas de poder e a violência que enfrenta, né, todo dia que a periferia é um lugar de sabedoria, de solidariedade, né, de tanta coisa boa. Mas não podemos esquecer do que enfrenta e que é o lugar que é sempre atacado também.


R Sim, e a gente vendo no noticiário, logo no noticiário da manhã, quando são feitas as coberturas de mobilidade urbana, né, quanto mais privatizam os serviços de transporte, de saúde e de educação, pior fica para essa população periférica, porque é essa população que sofre, porque é essa quem está…quem mora na centralidade tem seus planos saúde, tem seu… tem metrô, chega nesses bairros, tem possibilidade de pagar um carro de aplicativo, tem motorista, enfim. Então, eles não sabem o que é essa realidade. Essas políticas são para o apagamento, a política de apagamento, de extermínio mesmo, de massacre.


J Isso. Os turistas que chegam, né, os estrangeiros que assistem, que vêm para festejar carnaval não entende nada do que está acontecendo por trás. Então, em parte é isso que eu quero levar para um público internacional também. E do meu entendimento, os enredos de samba são comentários sociais, né? E eu queria ouvir de vocês se podia nos contar sobre um enredo marcante na trajetória da Portela.


R São vários, especialmente os que fazem parte da minha memória, né. “Lendas e mistérios da Amazônia” foi o enredo com o qual a Portela foi campeã em 1970, e 1971 “Lapa in Three Eras”. E para mim é muito bacana, porque eu moro nos arredores da Lapa, que tá no Rio de Janeiro. Estou morando aqui nessa região. Demorei décadas. Eu tinha um preconceito muito grande com o centro da cidade porque achava o lugar abandonado. Achava que ninguém moraria aqui, mas na minha [visão] de criança, achava que as pessoas só trabalhavam. Aí eu descobri uma região residencial extremamente bacana e com uma diversidade cultural incrível.


J Quero visitar!


R Sim, venha, venha! Então, e é bom, porque eu posso fazer esse diálogo. Eu como suburbano, eu estou sempre transitando entre o centro da cidade, o subúrbio, o centro, a Lapa e Oswaldo Cruz e Madureira. Então, para mim, é só enriquecedor essa experiência. Então, é um enredo extremamente fantástico, porque colocou em cena um personagem do qual já ouvia falar, mas que hoje virou uma luz com todos os trocadilhos possíveis, que é “Ilu-ayê”. são 50 anos desse enredo sendo em 2022, que foi o enredo idealizado por Candeia, Antônio Candeia Filho, e Antônio Candeia Filho foi, é o mesmo, tornou-se uma inspiração para mim, não só como pessoa, mas como liderança, como compositor, como artista e como intelectual negro. Porque ele além de ter idealizado esse enredo, ele foi um sambista, um homem, um personagem muito complexo. Ele teve várias faces na construção, na sua construção, de cidadão, de pessoa, de sambista, né. É um herói trágico, que eu chamo de herói trágico, porque ele nasceu dentro da Portela, filho de portelenses. O pai dele era Candeia, chamado de Candeia Velho, que criou as comissões de frente nas escolas de samba. Então ele é um…ele é orgânico, ele é..como o pessoal chama…ele é a raiz da escola, mas ele depois tomou outros caminhos, tornou-se policial, tornou-se um policial truculento, leva um tiro, inclusive aqui perto da Marquês de Sapucaí, em função de uma discussão de trânsito. Ficou paraplégico, ficou amargurado e depois se tornou uma grande liderança do movimento negro. Então era uma figura muito interessante. E ele, dentro das diversas, os vários legados que ele deixou, nós temos um livro chamado Escola de Samba: A árvore que esqueceu a raiz, em parceria com o Isnard Araújo, a fundação do Grêmio Recreativo Escola de Samba Arte Negra Quilombo, uma monografia sobre Paulo da Portela. É uma obra musical fantástica, maravilhosa. Então, é emblemático. Então esse enredo “Ilu-ayê” me traz essas referências. O outro enredo que eu gosto também era 1995, que foi o ano em que, depois de diversas dissidências, separações, vários portelenses voltaram para a escolha. A escola foi apontada como a melhor daquele carnaval, mas já acabou perdendo o campeonato por meio ponto. Mas eu desfilei esse ano e no desfile anterior e além de ‘95, ‘87, foi o meu primeiro desfile Adelaide, “A pomba da Paz”, que foi baseada no poema do escritor Walmir Ayala. O outro enredo muito importante para mim foi 2014, “Um Rio de mar a mar: do Valongo à Glória de São Sebastião”, porque o enredo é de minha autoria. Eu sou o autor desse enredo. Eu fiz toda pesquisa e a escola aceitou. E, em 2017, a Portela campeã finalmente, depois de 30, não sei quantos anos. Então, é isso… são esses enredos mais importantes. E agora, esse ano, o Baobá… a Portela vai falar sobre a importância do baobá. É justamente uma homenagem aos 50 anos de “Ilu-Ayê”. 


J E aí é pra quem não sabe o que é baobá, é a árvore, né? 


R 33.53 É a árvore milenar que existe na África e existe também na Oceania e foi transplantada para o Brasil, especialmente Pernambuco e Rio de Janeiro. Então, tem toda essa simbologia, porque faz referência à ancestralidade, à memória e é legado. Então, acho que tem essa importância de contar essa história e a Portela, com seus 99 anos, tem muito em comum com baobá, porque é frondosa, deu frutos, trabalha com a ancestralidade, com a memória. Então, têm muito em comum…


J É uma casa, né, também?


R Exatamente, casa para se respeitar.


J Com raízes bem profundas.


R Profundas e sólidas.


J Parabéns, viu?


R Obrigado.


J É muito legal acompanhar essa trajetória da Portela e chegar agora também pra saber tudo que já passou. E falamos um pouco sobre o contexto político, os desafios que enfrenta. Mas eu queria dar mais espaço para contar sobre a realidade de trabalhar nessa área de cultura hoje em dia.


R É muito difícil, porque, como falei há pouco, nós temos governos, instâncias públicas de poder sejam…tivemos no município do Rio de Janeiro um prefeito da igreja neopentecostal dessas igrejas protestantes neopentecostais. Temos um governador que segue a mesma linha e um presidente que também tenta se travestir de católico, ora de evangélico, mas na verdade ele é apenas um ditador ou um projeto de ditador. Então, é muito difícil. A cultura não tem espaço, porque a cultura…tudo que se refere ao pensamento, à crítica, à consciência, não interessa a esses governos, porque são caminhos de libertação, são caminhos libertadores. Então eles não querem pessoas libertas. Eles não querem pessoas livres nos seus corpos, nas suas cabeças, nas suas falas. Não querem. Então, o contexto, trabalhar com cultura é muito difícil porque a gente não tem incentivo. A gente praticamente não tem política. Agora mesmo, ontem, esse presidente da República, ele vetou uma lei, um projeto de lei que beneficiaria milhares de trabalhadores da área cultural. Ele vetou porque a lei é chamada Paulo Gustavo, e acha que isso não é política de Estado, né. Então, como governo, qualquer possibilidade de política de Estado, esse governo destrói. Vi as universidades. Vamos ver os casos dos patrimônios. Por que o Museu Histórico Nacional pegou fogo? Porque historicamente, especialmente em governos não progressistas, não há uma política de preservação de memória de patrimônio. Então, o Museu Histórico Nacional, que pertence ao FRJ, ele pegou fogo e sofreu um incêndio porque por falta de investimento, porque a universidade investe em pesquisa, em ciência, ensino e extensão e no caso do FRJ, isso é mais grave porque ela é detentora de um patrimônio material em termos de prédios, de acervos. É imenso. Ela investe em ensino, pesquisa e extensão. Ela investe em patrimônio quando deveria ser dos órgãos competentes do Ministério da Cultura, que inclusive foi rebaixada, a secretaria, né. E os orçamentos vão diminuindo cada vez mais, especialmente nesse governo. Então, trabalhar com cultura não é fácil, não é fácil aos olhos do poder público dos governos, mas também não tem o devido reconhecimento pelas mídias, pelos formadores de opinião, pela intelectualidade. É a mídia, no caso, a chamada mídia carnavalesca, que é um tipo de mídia que se dedica às escolas de samba dentro dessa pauta, as escolas de samba, as pessoas só enxergam o carnaval. Elas não enxergam que escola de samba existe o ano inteiro, e no caso do departamento cultural da Portela, nós temos uma agenda muito forte, muito potente, muito diversa, que valoriza o território de Oswaldo Cruz do Madureira, que valoriza a troca de saberes, que valoriza as pautas identitárias de étnico raciais, e de identidade de gênero, mas isso não tem visibilidade. Então, é muito difícil. É uma luta diária. É muito difícil.


J Só eu posso imaginar. Eu quero lembrar que tudo o que você está realizando como pedagogo, mas também produtor de cultura, apesar do Estado brasileiro atual, né, não tem apoio, não tem recursos para realizar tudo isso. Então, é mais incrível ainda que resiste, né, que continua.


R É. Porque a gente se inspira em candeia, né?


J Isso. Porque tem referências aos antepassados que já passaram…


R Exato… Fala da Portela, Zé Kéti, os fundadores, as mulheres. Então, a gente tem essas referências em nome dessas pessoas, dessas subjetividades que a gente trabalha.


J E falando nesses antepassados. Você pode falar mais sobre o processo de criar a PortelaWeb e os objetivos do site?


R Sim, a nossa ideia, primeiro lugar foi um grupo de torcedores que se conheceram numa lista fechada de um domínio aí. Então, nessa época, nos primórdios da internet, no final dos anos 90, meados dos anos 90, 2000, as pessoas foram se conhecendo e, por afinidade, foram se agrupando, criando sublistasespecíficas para nós. Criamos uma lista sobre– com os torcedores da Portela. E, a partir daí, houve a ideia de se criar um site, um sítio para a escola, que a escola não tinha nada nesse sentido. Estava bem no início mesmo na internet e foi ao ar no dia 25 de novembro de 2000. Então, qual era a ideia? Era não só contar a história da Portela, como também a história dos portelenses. O que que é a história da Portela? A história dos carnavais, Então, foi feito um trabalho de reconstrução dos desfiles da escola desde 1932, mas é até um pouco antes, quando é a história dela de formação, a formação da agremiação, a história dessas populações que migraram e povoaram Oswaldo Cruz esse entrecruzar de culturas, de povos de diversas matrizes africanas, e começamos a reconstruir essa história da Portela, mas também a valorizar os personagens. Então na verdade, o objetivo foi de trabalhar com memória, a memória da escola, a memória da escola e das pessoas, das personagens. Porque é muito fácil falar de Paulinho da Viola, João Nogueira, Clara Nunes, mas a gente sempre teve o objetivo de resgatar pessoas que estão no anonimato, não têm o seu conhecimento, reconhecimento devido. Então, a gente procura trabalhar com essas frentes aí.



J Parabéns pelo trabalho, porque é muito completo. Eu achei inovador também e quem quiser conhecer mais esses personagens, enredos, que é o visual também dos projetos, pode acompanhar o site.


R Sim, eu vou dar o endereço direitinho: www.portelaweb.org - o-r-g. Isso. E o Departamento Cultural da Portela é portelacultural.com.br


J Ah, entendi.

R São interfaces do mesmo trabalho. Um é mais histórico, memória místico e o outro tem uma agenda mais atual do departamento cultural. Temos acervos digitais que de tudo o que foi construído desde 2013 pra cá no Portela Cultural, e na Portela Web desde antes de 1932 até os dias atuais.


J Olha só. Essa história não vai ser apagada de jeito nenhum.


R Espero que não!


J Que bom. Então, já estamos chegando ao final dessa entrevista. Eu já aprendi muito e eu amo esses diálogos, porque eu consigo visualizar a história, né, as pessoas envolvidas, o contexto urbano também. E para fechar, eu queria perguntar: como é que você leva o contexto local do Rio de Janeiro para o mundo, com Portela, com esse site e com sua pedagogia também, e se tiver uma mensagem que gostaria de deixar para nosso público?


R Bem, em primeiro lugar, acho que já o trabalho em si já leva a mensagem, né, muitas mensagens, muitas histórias, muitas narrativas. Mas assim, em termos práticos e objetivos, nós temos um projeto chamado Consulados da Portela, que são representações da Portela administradas pelo Departamento Cultural da Portela, quando eu criei isso, foi em 2016 logo para assumir a diretoria, a direção do Cultural. Então, nós temos representações em São Paulo, em Brasília, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Nós temos em Petrópolis aqui no estado do Rio de Janeiro, temos uma representação no Japão, em Tóquio, e temos solicitações em Portugal, Estados Unidos e Reino Unido…Reino Unido e França. Então, é um projeto que está levando esse trabalho à história da Portela, a história dos portuenses e todo esse trabalho do Departamento Cultural para diversas partes do mundo. É aquilo…é mais ou menos a realização daquilo que o nosso fundador—um dos fundadores do Paulo da Portela, propôs o desfile, primeiro desfile da Portela, quando ela foi campeã do desfile oficial, quando ela foi campeã em 1935, que chamava, o enredo era O Samba Dominando o Mundo—então, é uma espécie de concretização dessa profecia através desse trabalho dos consulados, mas estamos usando as agendas também. Temos a festa literária, e nessa festa literária a gente procura sempre convidar e dialogar com outras pessoas do Rio de Janeiro, das baixadas do Grande Rio e até de outros estados também, né. A gente está sempre fazendo essa via de mão dupla, né, vias de diversas mãos, com todos os entes produtores de cultura. Então, é uma forma também de levar essa, esse nosso trabalho e essa nossa questão de compartilhamento, né, de saberes, de ideias e informações. Então, acho que são esses projetos aí que a gente faz, e está tudo também. Eu não quero convidar mais uma vez aos amigos e amigas para estarem, para acessarem esses sites e sítios aí. As redes sociais, no Instagram, no Facebook, no Twitter e a gente está lá sempre trazendo novidades. E no canal Portela no YouTube também temos uma série incrível, Portela Cultura no YouTube. Durante a pandemia, nós realizamos quatro programas semanais durante sete meses com diversas falas muito ótimas, muito potentes, muito interessantes, muito esclarecedoras. Acessam, estão lá.


J Isso. Vai lá então. Eu vou citar tudo no nosso site também na página de recursos. Pode acompanhar e visitar esses materiais produzidos pela Portela. Isso foi uma vantagem da pandemia. Foi de gravar, né?


R É. Porque foi a maneira que nós encontramos de mantermos nosso vínculo com a comunidade, com os amigos e fãs, colaboradores do Departamento Cultural e da Portela e no mundo do samba de um modo geral. Então, a gente vai estabelecer um diálogo muito bacana para nossa saúde mental também, né.


J Isso. Esse podcast começou também por essa iniciativa de continuar as conversas, de conhecer as pessoas e divulgar conhecimentos, então estamos continuando esse projeto. E a Portela já está no mundo, e vamos expandir mais ainda. Vamos conhecer a história. Vamos conhecer de onde vem a Portela e o carnaval, também, brasileiro, o contexto social que eu acho importante, apagado, né. História apagada. Isso não faz parte das imagens que são divulgadas sobre o Brasil. Então, estamos levando isso para o exterior e também compartilhando entre amigos e fãs e associados e colegas. Então, muito obrigada pela participação, Rogério. Foi um prazer conhecer mais você e também sua história e a história da Portela. Muito obrigada.


R Eu que agradeço, Jamie, a iniciativa, o convite maravilhoso. É um prazer imenso estar aqui conversando sobre isso, dialogando, e saber que temos essas afinidades, começando pela Bahia. Esse trabalho no seu podcast e nosso trabalho na Portela Cultural surgiram como desafio de uma realidade tão difícil como foi, como ainda está sendo, né, a pandemia do COVID-19. Então, muito obrigado. Espero ter a oportunidade de conhecer pessoalmente–


J –Também–


R –e sua família. Será um prazer recebê-los todos aqui, e vamos continuar dialogando, conversando, pesquisando, querendo. Só chamar.


J Vamos, sim. Está bem-vindo aqui também. Estou na Pensilvânia por enquanto trabalhando com a universidade, mas sempre fazendo intercâmbios e conferências, né, circulando nas redes e ampliando o conhecimento entre o Brasil e os Estados Unidos.


R Que maravilhosa!


J Esse episódio foi gravado entre Jamie Lee Anderson e Rogério Rodrigues Santos no dia 6 de abril de 2022. Eu agradeço a equipe de Brazil Culture Connections, as estagiárias Amanda Talbot, Madeleine Tenny e Naomi Lauseker. Também agradeço o apoio técnico de Jonatas Borges Campelo. A música chama “Retumbante Vitória” da Escola de Samba Portela no ano 1975. Se pode ouvir todos os episódios da primeira temporada Baianas em foco e a segunda temporada Arte e Cultura nas Periferias em todas as plataformas onde se encontram seus podcasts. Também temos todas as transcrições e as traduções das entrevistas em inglês em nosso site, www.brazilcultureconnections.com. Por favor, corte, compartilhe e divulgue em suas redes. Muito obrigada e até a próxima.