Episódio 3: O patrimônio centenário do Terreiro Bate Folha
com Carla Maria Ferreira Nogueira
TRANSCRIÇÃO EM PORTUGUES
Nosso terceiro episódio apresenta Carla Maria Ferreira Nogueira, uma filha de santo do Terreiro Bate Folha e doutoranda da Universidade Federal da Bahia. Discutimos o centenário do terreiro em 2016, quando colaboramos com professores e alunos da FACOM/UFBA em um projeto de documentário para registrar as histórias das gerações do Bate Folha. Carla acrescenta o conhecimento ecológico e a sabedoria ancestral da comunidade, o relacionamento entre o terreiro e o bairro, e o cuidado especial da tradição negroafricana dos terreiros.
Jamie: Bem-vindas, bem-vindos e bem-vindes ao podcast Conexões Culturais Brasil. Hoje eu estou aqui com Carla Maria Ferreira Nogueira. Ela é filha do Terreiro Bate Folha, candomblé de origem Congo-Angola no Brasil, que completou 100 anos em 2016, como Makota da Casa, partilha com pais, mães, irmãs e irmãos a vivência de pertencer naquele espaço. Estudiosa da história e cultura afro-brasileira e africana, iniciou suas pesquisas ainda na graduação, quando se voltou para os países africanos de língua portuguesa, sob a vertente da literatura. No mestrado, deu continuidade aos estudos, com interesse em analisar a atuação da mulher negra no campo literário, político e histórico de Moçambique. Trabalhou com a obra Sangue Negro da poetisa Noémia de Sousa e, agora, no doutorado, ainda na perspectiva de observar a importância da mulher negra, desta vez, para a manutenção do candomblé no Brasil, mergulha em seu lugar de origem, seu espaço de pertencimento, que é o próprio terreiro, para pesquisar as histórias, as falas e informações acerca da matriarca Nengua Guanguacesse, D. Olga Conceição Cruz.
Eu tive o privilégio de encontrar Carla no centenário do Terreiro Bate Folha. Juntas, trabalhamos no documentário do centenário e eu conheci o terreiro e a comunidade nesse momento histórico. E estou muito feliz de conversar novamente com Carla. Muito bem-vinda.
Carla Muito obrigada, Jamie. Eu que agradeço pelo convite, e, por essa possibilidade desse reencontro nosso mesmo que virtual, né?
J É, nesses tempos de pandemia com os barulhos de casa, faz parte, mas...Temos uma conversa super importante hoje sobre o terreiro, sobre o contexto histórico e ecológico do candomblé, principalmente o Bate Folha, esse lugar de resistência, né? Então, eu queria começar com você se apresentar para nosso público e nos contar sobre sua ligação pessoal e espiritual com o Terreiro Bate Folha, por favor.
C Como você já apresentou nessa mini biografia minha, né? Sou Carla Nogueira. Minha ligação com Bate Folha no primeiro momento é de ordem natural familiar porque meu avô, minha avó e minha mãe fizeram parte do terreiro. Todos já estão falecidos. Meu avô inclusive foi contemporâneo ao Seu Bernardino, nosso fundador. Minha avó vai em seguida e minha mãe em consequência dessa relação. E desde sempre vivi e convivi pertencia a aquele lugar deste modo meu contato com o candomblé surgiu dessa vivência no terreiro no Bate Folha. Que ocorria desde a gestação da minha mãe até minha fase adulta. Eu sempre estive lá, férias, nos fins de semana, nas obrigações, nas festas. Cresci nesse movimento de idas e vindas porque eu moro em um outro bairro. E depois desses, de 36 anos de vida sou iniciada, pois fui escolhida por Dandalunda para cuidar dela e sob a permissão de MBamburucema Nvula, Dona da Casa, fui confirmada em 2018 e assumo a função de Makota junto com outras irmãs. E desse convívio natural, familiar, vem o espiritual que eu desenvolvi desde muito nova desde a adolescência, passei a racionalizar sobre essas vivências todas. E, o que é prática do cotidiano passou a ser elemento também de força e energia simbiose com o sobrenatural. E me fortaleço na fé para compreender a complexidade e ao mesmo tempo a completude do ser humano em harmonia com a natureza e os Nkisis. Então, Carla é tudo isso. É mãe, mulher, mulher negra, esposa, trabalhadora, estudante, Makota, filha de santo, e adoro pertencer a esse lugar.
O Terreiro Bate Folha no bairro Mata Escura - Salvador, Bahia, Brasil
J Sim, você também é professora, né? Escritora, militante... tanta coisa.
C Tento conciliar tudo isso, porque a relação com essas mulheres, que é o meu interesse, né, de pesquisa, molda muito e me movimenta para essas ações que eu acho incrível como no cotidiano faz dos terreiros, as mulheres elas se movimentam e fazem que as questões e situações circulem em torno desse cuidado, dessa proteção, que é essa noção de família ampliada que eu aprendi no Bate Folha. Porque todos ali são tios e tias, irmãos e irmãs, primos e primas de uma relação espiritual e não consanguínea [somente]. Então quando o núcleo familiar, que a gente ainda mantém muito essa perspectiva aqui nas periferias, ele se dissolve como no meu caso que eu perco meu avô, minha avó, minha mãe. Eu tenho todo esse amparo, esse aparato familiar negroafricano, sabe? Dessa herança que estava desde os tempos da escravatura quando precisaram restabelecer laços de dignidade aqui no Brasil. Então, o candomblé a gente tem muito isso, essa nossa família ampliada, que não está só na nomenclatura. Ah, esse aqui é meu irmão, esse é minha irmã, não. Tá no cuidado mesmo nas relações.
J Tudo isso foi muito nítido durante o processo das entrevistas, do documentário, né? Que a FACOM, a Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, onde você faz o doutorado, né, e eu fiz o mestrado. Eles fizeram uma parceria com o terreiro para fazer essas entrevistas para entender mais a trajetória do Bate Folha, né? E essas gerações familiares da família de santo. E eu queria voltar para esse momento que foi quando eu conheci o Bate Folha e também quando o Bate Folha comemorou esse momento tão histórico e eu queria saber mais de você sobre a importância desse momento, não só para a comunidade do Bate Folha, mas para os terreiros do candomblé em geral e para a herança africana no Brasil.
C Foi muito bom você rememorar esse momento porque foi de uma confluência de energias fantástica. Eu entro para fazer o doutorado em 2015, no final de 2015, e no início de 2016. E já chego com esse vislumbre de uma necessidade real do terreiro, dessa comemoração do centenário. Então, como vão comemorar cem anos, cem anos é muito tempo. E tem uma representatividade uma simbologia enorme para a história de sobrevivência, de luta, de experiência de vida que sai de uma instituição negra e candomblé no Brasil que se sabe vivenciamos momentos de intolerância, preconceito e manter essa estrutura há cem anos tem um significado enorme. E Jamie, aquele momento foi incrível, foi grandioso demais e condensador de um século de resistência. Quantas pessoas vivem dali e passaram por ali, sobreviveram daquela energia e daquela terra. Muitas histórias foram relembradas de pessoas que criaram seus filhos e filhas a partir dos frutos, das folhas que iam vender nas feiras e o candomblé do Bate Folha é um bioma importantíssimo para a comunidade da Mata Escura. Pois possui uma forte simbologia negroafricana da preservação religiosa cultural, humana e da natureza. Não agredimos, nós cuidamos, nos salvaguardamos. Então, comemorar cem anos foi muito interessante porque percorreu todo o ano de 2016, desde a primeira obrigação em janeiro à última em dezembro que foi no mesmo dia de registro do documento oficial, né? Da escritura da casa, em 10 de dezembro 2016 o centenário ele ocorre, é, a obrigação de MBamburucema Nvula ela ocorre em 10 de dezembro de 2016 mas estavam ali agradecendo por tudo que foi construído e renovamos o compromisso de manutenção. Então em meio a essas obrigações religiosas, nós tivemos espaço de abrir para a comunidade, para falar, para discutir a importância daquele lugar, fizemos seminários, fizemos encontros, e tivemos um documentário então pela primeira vez na história do Bate Folha nós tivemos um registro das falas, das histórias daquelas pessoas. Então foi um movimento de dentro para fora. O Terreiro Bate Folha, ele tem uma particularidade muito interessante. Quem frequenta, quem vive, quem é do Bate Folha são pessoas do senso comum. Então são lavadeiras, são pessoas que trabalham no banco, trabalham na feira, são professoras. Então nós não temos classes artísticas e políticas que frequentam o Bate Folha. Ele é mantido e preservado por aquelas pessoas que vivem em seu cotidiano, seu dia-a-dia de luta diária, sabe? E foi muito especial que agregamos interna e externamente, então vieram pessoas de fora da Bahia, inclusive, de outros estados, congregamos outras nações: Ketu, Jeje, tivemos espíritas, tivemos pessoas da Umbanda. Então foi um momento muito importante para a gente em que ouvimos dos filhos e filhas da Casa qual era a importância do terreiro e aí emergiram histórias das mais simples às mais difíceis situações de ligação com o sobrenatural, com Nkisi, sabe? Histórias de ajuda, de parcerias, e que nos fez ver do que compõe realmente o candomblé, o candomblé do Bate Folha eu falo especificamente desse lugar, são esses laços de irmandade, de crença no que a gente não vê. Porque o contato com o invisível, ele é permanente. Então quando nós colocamos a mão no chão e pegamos na testa e na nuca reverenciando o chão é porque acreditamos que aquele chão é vivo, que ali tem energias, que nos acolhe, que cuida dos nossos passos. Então o centenário, ele foi de uma importância simbólica e significativa para todos nós. Relembramos dos nossos mais velhos que já se foram. Relembramos de momentos de obrigações, de festas em que ocorriam a céu aberto. Relembramos as mudanças, inclusive, da estrutura física que não são muitas. Quer dizer, nós tivemos obviamente os próprios quadros que tem no espaço da casa que a gente chama de sala grande e mostra isso. Então é um patrimônio a céu aberto. Tanto dos assentamentos, das árvores, da terra, do chão, quanto da estrutura da casa principal, do barracão, dos quartos dos Nkisis, dos espaços fechados, então compilar tudo isso em um momento foi… eu não dirigia mágico, mas foi mágico, porque isso faz parte de nossa vivência, né, a gente tem isso, esse reencantamento, sabe, do mundo a partir dessa relação espiritual com noss
"Porque o contato com o invisível, ele é permanente. Então quando nós colocamos a mão no chão e pegamos na testa e na nuca reverenciando o chão é porque acreditamos que aquele chão é vivo, que ali tem energias, que nos acolhe, que cuida dos nossos passos."
Carla Nogueira
J Tudo fluiu muito bem. Eu lembro, eu acompanhei, assim tantos atos fora do terreiro quanto dentro. E tinha tanta alegria, eu lembro que tinha tanta comida, música, mas também discursos, né, palestras no seminário. Era uma ação política ao mesmo tempo que era uma celebração da conquista, né, e o terreiro também, pode falar um pouco mais sobre essa origem Congo-Angola, porque é a casa mais histórica dessa nação ainda existente, certo?
C Sim, sim o Terreiro Bate Folha ele é muito conhecido por resguardar tanto no tempo histórico, né, esse percurso temporal de data, quanto na figura, na importância do nosso fundador. O nosso fundador Bernardino, Manuel Bernardino da Paixão. Inclusive nós temos a tese de doutorado do professor Erivaldo Sales Nunes, que fala sobre “O Bate Folha: A Trajetória e Memória do Candomblé de Bernardino”, então nosso fundador ele travou na história do candomblé do Brasil, um marco, uma história muito fundante, muito marcante. E sobrevivemos a esse diálogo, essa relação com outros candomblés Ketu, né, que são os mais conhecidos, Jeje também. Então nossa origem é, nós somos Angola, Congo, pela linhagem de nosso fundador, Seu Manuel Bernardino ele é iniciado pela nação Congo e por essa relação com o grupo etnolinguístico Bantu, que aí seria outro encontro para falarmos sobre isso, mas a gente tem na nossa linguagem, na nossa ritualística, nas nossas palavras, nós trazemos o Kimbundu. Então está nesse desenho de terminologias que estão aí também na fala popular, mas está em nossa linguagem religiosa, essa herança que vem desse território Congo e Angola. E preservamos, preservamos nas nossas cantigas, preservamos nas nossas palavras, porque quando mencionamos determinadas terminologias e quando nós vamos ao dicionário nós encontramos na origem Kimbundu. E trazemos nesse legado esse contato com a natureza. Então os nossos Nkisis eles têm uma correlação muito direta com a natureza, né, com o verde, com as águas, com a mata, com a terra, com fogo, com a chuva, com essas energias que circundam todos esses elementos naturais.
J Sim, que são tão presentes no território do Bate Folha. Né, para quem não conhece, é uma Mata Atlântica, uma das maiores áreas preservadas na cidade de Salvador é o Terreiro Bate Folha. Eu queria ouvir um pouco mais sobre a importância dessa territorialidade, né dentro do bairro Mata Escura, e durante as entrevistas do documentário a gente viu muitas falas sobre isso - como isso tem transformado historicamente junto com o terreiro. E também essa importância das sabedorias ecológicas que tem no candomblé e essa relação com os Nkisis que nos ajudam pensar na preservação ambiental e esse equilíbrio entre os humanos e a natureza. Queria que você comentasse mais sobre esses assuntos.
C É outra grande riqueza que nós temos. Nós conseguirmos ter preservado durante todo esse tempo diante dessa especulação imobiliária, desse crescimento desordenado, inclusive, que nós temos em Salvador, é... manter a mesma metragem que nós encontramos na escritura em um bairro popular. Então, o Bate Folha ele é, tem um biome importantíssimo para aquela região, tanto na preservação da mata quanto no nascedouro dos rios. Então em um dos momentos do centenário, nossas mais velhas relembravam quando iam lavar roupa, pegar água na Fonte da Telha, na Fonte da Bica. Então foram recordações de um passado não tão recente, né? Mas de um Salvador que ainda era rural. E o Bate Folha, ele diferentemente de muitos terreiros, que acabou perdendo a sua grande extensão, foi se reduzindo, né? Ele manteve. Ele manteve essa área extensa de árvores, de um rio que vem diante dessa ocupação residencial de determinada região acabou que..ficou poluído, que é outra operação que a gente encampa já há um tempo no Ministério Público solicitando a preservação desse nascedouro que nós temos. E o Bate Folha ele acolhe, ele recebe, ele mantém esse espaço de árvores frutíferas, com folhas, desse conhecimento, dessa sabedoria milenar de como curar com meio da chá, como, sabe cuidar de ferimentos por meio de determinadas folhas. Então a gente tem esse espaço que é preservado lá. O centenário também vem com esse mote importante de mostrar como nós, como nós preservamos sem um apoio institucional. Nós somos tombados, mas há movimento e um exercício de preservação que é natural para as pessoas que estão lá. Não teve formação, não precisou ter curso, não. Isso é feito pelos nossos mais velhos que é passado para os mais novos que chamavam atenção do que é plantado, do que é renovado. Então tem esse elemento que você traz, que você relembra que é muito significativo para o candomblé, o que a gente aprende no candomblé sem mata, sem água, sem folha. Nós até cultuamos, mas os nossos Nkisis eles nos mostram a completitude da vida e se lidar com essa relação com o natural.
"O centenário também vem com esse mote importante de mostrar como nós, como nós preservamos sem um apoio institucional."
Carla Nogueira
J Sim, isso foi muito nítido assim. Eu vi na minha experiência morando em Salvador e visitando o Terreiro Bate Folha que vocês fazem o que o setor público e o setor privado não faz, não fazem, não conseguem fazer ou não têm o interesse. Né? Que não é só preservar mas é ter esse respeito pela natureza, o espaço que é necessário para ambientes saudáveis, né? Para essa relação com os humanos que precisam de água limpa, de ar limpo, né? A poluição das águas em Salvador é uma coisa muito, não só triste mas perigosa, né? Então, eu vejo que vocês não só nisso, mas o cuidado com os mais velhos, né, a educação que dá para todo mundo que cerca não só o terreiro, mas o bairro. Tudo isso foi muito forte para mim.
Carla Nogueira, Makota do Terreiro Bate Folha
C Foi. Esse contacto, esse respeito com os mais velhos, esse respeito com os velhos, esse respeito com a natureza é muito significativo pensarmos como isso se dá, porque nós temos, nós trazemos esse legado, essa herança negroafricano, e eu demarca mesmo “negroafricano” que a gente fala de um recorte de um espaço, né, do continente africano até para demarcar que o continente africano são 54 países e que esse processo histórico se dá numa determinada região e em meio a discussões e deliberações em estatuto, né? Que fala de se respeitar os idosos, de não deixar, de não abandonar, de não deixar em asilo, de não desrespeitá-los, né? No candomblé, e lá no Bate Folha, a gente percebe que sem elas e eles a gente não dá continuidade. É ter essas referências vivas que nos move para lá no futuro nos transformarmos nesses homens e mulheres que também passarão esse legado adiante. Então, nós temos uma realidade no Bate Folha muito rica. São de pessoas vivas com 95, 90 e 80, 87, 70 anos que têm uma dinâmica, memória e uma atuação que faz com que as coisas aconteçam ali. Sabe? A nossa Nengua que é a figura principal, a persona do meu trabalho de pesquisa no doutorado, ela tem 95 anos. Está 71 anos ali no Bate Folha. E nós temos outras mulheres, outras senhoras que foram iniciadas no segundo Tata da Casa, o segundo Pai de Santo da Casa, né? Que é Tata Bandanguame, que estão ali e que participam nas obrigações, que relembram histórias, que nos orientam, que nos corrige. Sabe? Que movimentam o corpo com muita vivacidade porque estão reverenciando nkisi. Estão ali renovando a sua fé e a sua energia, e nós aprendemos no ver, no ouvir,e no perceber na movimentação delas. Então nós temos a Nengua como falei, né? Nengua Guanguacesse, 95 anos e que foi iniciada no segundo, no sucessor do nosso primeiro, do nosso fundador, então Tata Bandanguame foi o segundo Pai de Santo responsável pela casa. Então Nengua Guanguacense foi iniciada nele, nós temos Kotas Kixima, Nedembu, Tuandelê, Kianguiá, Molongá. Makota, nós temos minha tia Kiriuankê. Nós temos essas mulheres que experimentaram, vivenciaram situações do início do século 20. E estão aí, sabe? Meados do século passado e estão aí com 90 anos com muita vitalidade, vivacidade e memória de um tempo passado que nos liga a esse presente e que nos faz ter coragem para enfrentar um futuro incerto, né? Então, mundialmente a gente vivendo a pandemia, no Brasil a gente tem essa situação calamitante desse desgoverno que estamos vivenciando. E essas mulheres elas nos mostram e passaram por momentos tão difíceis quanto ou piores e seguiram, seguiram na fé, seguiram na batalha do dia-a-dia e que estão aí nos ensinando. Então o nome, o próprio, os nomes que eu pronunciei aqui são dijinas. Então, são os novos nomes que nós recebemos quando nos iniciamos. Então agregada a Carla Maria Ferreira Nogueira hoje sou Makota Mukuá Muiji Então só essa nomenclatura, sabe? Esse termo que a gente traz, esse novo nome que a gente recebe no processo de iniciação, ele é muito significativo. Ele vincula com um passado de força, luta e resistência e fé, que é o que nos move e que nos faz conviver com o espiritual muito próximo. Eu costumo dizer que as nossas deusas, eles não estão longes, eles estão ao nosso lado. A gente sente no arrepiar da pele, a gente sente uma emoção, a gente sente um redirecionamento, numa intuição, e assim a gente vai aprendendo a cuidar e lidar com o visível e o invisível. E essas mulheres e essa mata e essa preservação ambiental é o que nos faz perceber no toque e no cuidado que estamos indo no caminho certo. Ou seja, o modelo que tem aí, sabe, de capital, de ter, ele não tem funcionado. Os terreiros têm nos mostrado que um caminho possível é esse que elas nos trazem, elas e eles, que essa confluência de homens, mulheres, senhores e senhoras, crianças revivendo tudo isso que façam que a gente siga e perceba que o ter não é o principal não, é o ser, é o conviver, é o dia-a-dia.
J Me emocionei na fala. E também nas experiências, né? relembrando toda essa sabedoria e autonomia.
C É! Você trouxe autonomia. É muito interessante porque, e aí eu, eu não sei eu lanço para você também, como foi essa sua experiência, porque você sai de um contato de uma realidade aí nos Estados Unidos, né, vem para o Brasil, tem contato com terreiros. Então você foi, foi no encaminhar esse seu muito interessante também. É surge de um… também não sei se surge, você também me corrige, mas é uma curiosidade minha tanto de saber desse seu percurso e de essa sua experiência porque eu te vi muito entregue aquele momento. Então, não era um estranhamento, poderia até ser um distanciamento porque não fez parte de sua, da sua vivência, né, infantil, de adolescência, mas quando você se depara com tudo aquilo, você se depara com uma abertura e uma participação… eu já te disse uma vez que você foi, você foi uma das escolhidas. Porque as coisas aqui no Bate Folha elas não ocorrem de uma maneira aberta, de uma projeção, meia aleatória não, é por isso que você foi escolhida. Você participou do início, meio e fim desse processo. Na edição inclusive de vídeos, das histórias dessas mulheres. Você fez um recorte, teve essa premiação inclusive aí, então eu lanço pra você também essa, essa pergunta de como foi tudo isso até chegar no Bate Folha.
J Ótimo, obrigada. Não, eu acho que não podia ser por acaso que eu cheguei para fazer minha pesquisa no ano do centenário. Nada disso foi planejado, né, na minha vida. Mas eu sempre digo que eu sigo as portas abertas, né, e o candomblé tem isso também. Tem portas fechadas e tem portas abertas, e eu entendi que não dá para ficar batendo em portas fechadas e é sempre bom direcionar seu caminho para o que já está te esperando. E eu nunca esqueço a primeira vez que eu consegui chegar no Bate Folha, porque não é fácil, né. Você não consegue no Google Maps assim facilmente para alguém que nem conhece Salvador de dentro, né, porque Salvador é enorme. Tem tantos bairros e Mata Escura é um bairro que eu não conheci. Eu fui sozinha e eu me dirigi. E eu tive que parar e falar com pessoas assim na rua, “Oh, pode me direcionar?” Até teve evangélicos que olharam para mim assim não querendo me ajudar. Mas, eu fui persistente, porque eu conheci a história do terreiro por causa de minhas pesquisas sobre a Ruth Landes, sobre aquela época da década trinta, né, com Edison Carneiro, tem relatos em etnografias, mas sempre como um lugar que é muito difícil de entrar, de conhecer. E eu não fui por isso querendo “Oh, eu tenho que saber o que ninguém sabe.” Não foi por isso. Mas foi a abertura da casa, que também foi um momento histórico de vocês, de fazer essas ligações até com o setor público, porque sempre me identifico como pesquisadora, né, ligada com a universidade, mas também a esses debates sobre o patrimônio, sobre a preservação. Então eu senti que era OK chegar nesse momento. E quando cheguei, lembro que eu entrei no estacionamento. Teve alguém que abriu o portão para mim. E alguém, um Tata, eu esqueço o nome agora, mas um Tata olhou para mim e disse, “como é que você chegou aqui no Bate Folha?” Mas, se eu cheguei era para chegar, né, então fui muito bem recebida, e lembro que eu fiquei esperando na sala de espera fora da cozinha e teve a equipe da FACOM. Tinha alunos lá já fazendo essa articulação do documentário, então entendi que eu poderia me encaixar porque eu já tive experiência com a UFBA. Eu fiz o mestrado, então já tinha esse contato e eu era pesquisadora que eu senti que poderia apoiar o projeto e acompanhar fazendo essas etnografias.
Mas, eu já tinha conhecido outros terreiros, mas eu senti principalmente que a territorialidade do Bate Folha era algo que eu nunca tinha encontrado na minha vida. Assim você sente os Nkisis no vento, né, batendo nas folhas, aquele pé de Tempo, a festa de Tempo acho que foi a primeira festa que eu fui que foi para o centenário em agosto em 2016 e é uma festa tão linda que atrai pessoas da cidade do país inteiro. Então eu senti essa atração pela sabedoria, pela história da casa. E também eu senti que a casa estava pronta para receber pessoas desse jeito. Então acho que encaixou dessa forma e estou aqui ainda tentando ampliar os discursos sobre não só o lugar, mas sobre as políticas de cultura, as políticas urbanas, né, sobre os direitos de terra, sobre a urbanização em Salvador, essas questões e como afetam os terreiros. Me interessa muito. Porque eu sei muito bem agora depois dessa experiência o valor desses lugares não para só quem é de dentro, mas eu acho que o mundo afora tem muito a aprender sobre os cuidados, os legados, né, a história africana nas Américas que não é bem contada, é manipulada ou silenciada por causa do racismo. E também o ódio e o racismo religioso, tudo isso acho que precisamos de mais ações e discursos. E em inglês também que mostram outro lado dessa história e dessas ações. Então, esse podcast é para ampliar e traduzir tudo isso para leitores e ouvintes em inglês também porque eu fiz muitos trabalhos e ações no Brasil, mas essa tradução para um contexto totalmente diferente e para uma língua diferente, é outro tipo de trabalho que eu estou comprometida a fazer nesse tempo que eu tenho o pós-doc aqui em Pennsylvania agora. Então eu estou continuando esses trabalhos, mas sempre reconhecendo os líderes, né, religiosos, as pensadoras como você, como as Makotas, as Nenguas do Bate Folha e de outros terreiros, e eu estou querendo ampliar esses contextos e essas vozes com esse projeto.
Carla Nogueira e Jamie Lee Andreson no Terreiro Bate Folha, após o lançamento de Ruth Landes e a Cidade das Mulheres (Editora UFBA, 2019).
C Que bom, que bom. Obrigada por ter respondido. E estamos juntas nessa empreitada. Quando eu levo esses debates para a academia, é exatamente para trazer outras epistemologias, outras cosmovisões de mundo, mesmo estando no Ocidente. Que é muito interessante eu me perceber e perceber como minha avó, minha mãe agiu, como essas mulheres agem. Que em meio ao mundo Ocidental, nós temos performances, maneiras de ver e de agir que foge dessa caixa imposta, sabe, pelo capitalismo, pelo neoliberalismo, pelas religiões ocidentais. Então há uma tentativa permanente de diálogo inclusive, porque quando a gente insere que é uma discussão muito importante sobre o sincretismo, e quando a gente abraça e dialoga com outras religiões, é dizendo, olha o caminho é esse, é o caminho do respeito, não é só me tolerar. Não é se incomodar com minhas vestes, com meus acessórios e com a minha fé. Porque a minha fé e todos esses elementos que carrego é de cuidado, não é de desmatamento. Então quando nós temos no Brasil--no mundo, nos Estados Unidos--organizações não governamentais pressionando governos para preservação ambiental, olhe o que ocorre com a Amazônia, olhe as denúncias que estão sendo feitas, então tudo está sempre transformando em pastos para o lucro. Estudos, a ciência comprova que esse desmatamento vai nos matar. Então a gente vem de uma lógica contrária, de um conhecimento antigo... discutir inclusive, esses conhecimentos, esses saberes que estão fora da academia. Então quando eu levo esse para o espaço acadêmico a importância da Nengua, como ela tem uma atuação política, religiosa, social, no bairro do Mata Escura no Terreiro do Bate Folha, que se dilata para outros terreiros de candomblé porque de lá ela rememora histórias do passado de outros terreiros, de outras casas, quando dialoga com outras nações. E a academia vai enclausura isso em Iorubá, Congo-Angola, Jejê e destaca assim um do outro, fala-se em pureza, mas o caminho é o contrário, é toda essa confluência, sabe, que, esse povo nos ensina o tempo todo. Então é essa questão, não é são uma questão, são esses ensinamentos sabe, Jamie, que eu aprendi. Que eu tento passar para a minha filha, que eu quero deixar registrado na universidade, inclusive para que outros e outras estudantes possam se interessar em discutir as pessoas que estão próximas. Que percebam, que analisem, que essas questões elementos de pesquisa, sim--as rezadeiras, as relações que são estabelecidas nas periferias. Na época da pandemia a gente tem discutido muito as relações, o zelo, as redes de solidariedade que estão sendo construídas. Então quem está nos seus castelos e que visa lucratividade não se movimenta. Sabe. Muitas vezes esse movimento ele está atrelado a uma compensação de imposto, de redução disso ou daquilo. Mas essas redes de solidariedade, que o candomblé está aí inserida, que inclusive, foi um dos primeiros, uma das primeiras religiões a sinalizar -- não vamos abrir nossos terreiros, as nossas casas pelos riscos de infectar, da morte dos nossos mais velhos. Nós temos um percentual significativo de pessoas mais velhas. Então nós não vamos contra a isso. Quem tá ai, quem nos assola, até conhecermos, até sabermos quais são as medidas. Então, estamos juntas. Eu, não sei se finalizou mas de antemão eu quero agradecer por esse momento de construção, sabe, muito bom conversar contigo. E você falou de algo muito importante que é no candomblé tem portas fechadas e portas abertas. Temos momentos. Eu aprendi que a gente deve abrir o nosso ouvido para a mata. É aguçar? a nossa percepção, é perceber mais do que falar. Mas isso tudo nessa conexão que é externa a nós mas que é interno. Para que a gente se compreenda ao meio de tudo isso. Então em plena pandemia o que tem discutido, sobre saúde mental, sobre descontrole emocional, a gente mais uma vez reforça essas ligações que nós temos no candomblé com o invisível que nos dá força para não sucumbir, não se descontrolar ao ponto de afetar a nossa saúde. Então, debater esse patrimônio que é material, que é imaterial, que é o humano? Faz parte desse campo do meu interesse.
J É, eu acho que aprendi muito mais a ouvir e observar com minhas vivências nos terreiros. Que também eu vejo como um caminho, uma prática antirracista também, né. Que é sempre algo que estou fortalecendo não só dentro de mim, mas de minhas redes, tantas familiares, pessoais, quanto profissionais. E estamos aqui fortalecendo essas redes. E agradeço muito. Eu acho que precisamos de muito mais papos, tomar mais um cafézinho, vou voltar para o Bate Folha depois de passar esse momento que está desafiando todos nós. Mas eu tenho muita fé, muito respeito, muita admiração pelas redes de solidariedade dos terreiros e abraços para você, para todos do Bate Folha, muito obrigada.
C: Obrigada você por esse momento, vou reproduzir, sim. Nós lembramos muito de você, perguntam e querem saber se está bem, como é que está, e até o nosso próximo encontro, reencontro presencial aqui em terras baianas, no solo sagrado do Terreiro Bate Folha. Muito obrigada, Jamie.
J: Obrigada Carla, e vamos compartilhar esse trabalho com as pessoas do terreiro, com as redes acadêmicas também, de cultura, né, e vamos ampliar os discursos. Até a próxima, abraços.
C Até, abraços.